sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Um país para inglês ler

Uma "passagem desbotada na memória das nossas novas
gerações" que vem à tona na mídia internacional. 
Yes, nós temos prestígio internacional. Por sermos uma nação que cresce em diversos sentidos, crescem igualmente os olhos do mundo sobre nosso país. No entanto parece que só temos clara consciência ou clara informação disso quando estrangeiros relatam as mudanças em território brasileiro.

Não é questão de vaidade. Tampouco de orgulho nacionalista, patriótico. Mas certos fatos contados na terra brasilis são sufocados pelo oligopólio da informação. Em boa parte das vezes, a melhor fonte de informação sobre nosso próprio país é a “foreign press”.

Tal foi o caso da famigerada crise na USP. A impecável grande mídia nacional compartilhou o conservador discurso da meia verdade. Abusou da maconha, da reintegração de posse e dos “baderneiros” e “vandalismo”. Quase sem distinção, como há muito se faz. Informação em pacotes. Só muda o embrulho da emissora ou da redação.

Tal não foi o caso da CNN, que contou que a USP foi tomada por policiais e ainda expôs algumas das reivindicações estudantis, como a retirada da PM do campus e uma maior dignidade no trato com a educação:


No mesmo episódio, até a Fédération des Syndicats SUD Étudiant, na França, dedicou uma nota mais elucidativa que toda a produção da grande mídia brasileira. Eles sabem mais do que nossos grandes jornalistas ou eles tem mais responsabilidade frente à cobertura dos fatos? Entendem mais sobre educação e sobre o papel de uma universidade na sociedade, como bem demonstrado.

Pouco se fala, na grande rede midiática nacional, sobre a importância ética e histórica da criação da Comissão da Verdade. Lá fora não acontece o mesmo. Manuela Picq, na Al Jazeera, deu uma aula de jornalismo aos nossos rabos presos das grandes redações, mostrando a importância das comissões da verdade e do reflexo dessa posição do Estado sobre o processo democrático de uma nação.

Por mais que a nossa Comissão possa ser "para inglês ver", o assunto é profundamente exposto para além de nossas fronteiras.

São alguns exemplos de como a realidade crítica e polêmica do Brasil dobra os sinos gringos. Sobretudo, como certas questões são discutidas por um jornalismo livre das amarras de abstrusos acordos entre imprensa e sociedade política. Assuntos explanados de maneira mais clara, imparcialmente internacional.

O francês Le Figaro já em uma manchete destacou a flexibilização da proteção florestal no país com a tenebrosa reforma do Código pela câmara federal, coisa que a ruralista Band jamais faria, muito menos o pseudo ultra politizado CQC.

O espanhol El País também destacou a aprovação do Código Florestal pelo senado, realçando que, aprovando a anistia aos desmatadores, o Brasil dá “um recado contraditório ao resto do mundo”.

É tétrico, nobre cidadão. A ironia ronda nosso acesso à informação. Para compreender melhor o nosso próprio país, necessitamos saber inglês, espanhol, francês e sabe-se lá o que estão contando em russo sobre o Brasil. Conhecer outro idioma para ter clareza do que sucede na própria pátria merece um trecho de realce na série “Oximoro, nosso tropo”.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

No rastro federal


Prédios dos ministérios em Brasília. Com um bloco
de notas nas mãos e um ministro na cabeça,
os inspetorescaçam testemunhas. Foto: Orlando Brito

“E agora, qual ministro investigamos?” Essa batida frase deve ser repetida a cada queda de ministro na sala da justiça da grande imprensa nacional.

No rastro federal seguem os Holmes das redações, os Dupins dos editoriais, os detetives ávidos pelo furo. Aliás, conhece alguém que pode incriminar algum dos ministros? Toma meu cartão e aventamos contrapartidas.

Não que seja errado, pelo contrário. Jornalismo investigativo deve estar a serviço da população exatamente por essa trilha. Já passamos tantos anos anestesiados com a corrupção aqui e acolá quando o papo é política. Nada nos surpreende.

Mas sete ministros? É muita corrupção, não é?

Talvez, caro cidadão. Os ministros caíram como suspeitos. Alguns com comprovada irregularidade, caso de Pedro Novais (PMDB) e Carlos Lupi (PDT). E os demais, houve investigação jornalística depois da queda? Uma nota aqui, outra ali. O importante é cair.

Mas no rastro federal eles prosseguem. Os Poirots no planalto central, os Clouseaus atrás das ONGs e de suas prováveis irregularidades. Lupa na mão e gravador no bolso. A primeira fagulha de suspeita vira sermão acusatório. Implacabilidade.

Segura Negromonte! Já não basta a má fama do seu partido, se aparece irregularidade com seu nome, a defenestração é sumária. Os inspetores seguem seu rastro, em Brasília e em Cuiabá.

E traga às claras, Pimentel. Onde há a fumaça da suspeita há o fogo mortífero dos, por assim dizer, paladinos da ética da oposição direitista. Que papo é esse envolvendo sua consultoria?

A sala da justiça da grande imprensa deve ter informantes pela esplanada. Ou melhor: só deve ter informantes na esplanada, nesse nosso rastro federal.

Agora, imagine você se o Kassab fosse ministro. Com a chuva de suspeitas de fraudes contratuais envolvendo a Controlar. E o que dizer do secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente da Pauliceia, Eduardo Jorge? Seu cargo é o mesmo de um ministro, mas no plano municipal. Em virtude disso seremos mais brandos?

E nas demais capitais, nos estados da federação, a seguir o exemplo paulista, será que só há corrupção no rastro federal?

Um dos principais motivos da numerosa queda de ministros nesse ano não foi meramente a corrupção. Essa nossa ancestral conhecida não discrimina instância governamental. Ela faz folia no plano federal, no estadual e no municipal. Ela homenageia Montesquieu e dá suas caras nos legislativos, nos executivos e no judiciário.

Os ministros caem porque subiram sob o abjeto regime de coalizão governamental. E é assim em qualquer canto. Os coligados do vencedor só precisam de uma piscadela para arrebatar cargos do alto escalão. Vencemos juntos, governamos juntos. Acordo tácito.

O problema é que são escolhidos os caciques, os figurões de cada partido coligado. E repito: é assim na União, nas unidades federativas e nos municípios. Velho costume.

Elementar, caro cidadão. Que caiam os que precisam cair. Mas e os demais secretários estaduais e municipais pelos desconfiáveis becos da política nacional? Tantos suspeitos, como em qualquer conto policial.

Fiquem atentos, nobres detetives de diários, tablóides e periódicos. Há mais rastros a seguir pela noite, pois se esses são preteridos, a suspeita pode cair sobre vocês.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

“Vai virar mar”?


“O homem chega e já desfaz a natureza
Tira gente, põe represa
Diz que tudo vai mudar”

Sá & Guarabyra lançaram “Sobradinho” em 1977, cantando os efeitos da construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho no Velho Chico, próxima às igualmente musicais Juazeiro (BA) e Petrolina (PE).

Sobradinho demorou seis anos para ser construída, alagando uma área total de 4.214 Km² do sertão baiano. Completando a ficha do empreendimento, a usina tem capacidade de gerar 1.050 MW e é gerenciada pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF), uma empresa da Eletrobrás e responsável, também, pela famigerada Belo Monte.

Na década de 1970, o governo militar ainda construiu pela goela da população a Usina de Itaipu, alagando o Parque Nacional de Sete Quedas no Paraná.

Belo Monte tem se mostrado um empreendimento polêmico. Impacto qualquer obra tem. Seja ele ambiental, social ou ambos. Adquirimos o costume de questionar impactos socioambientais quando entidades competentes também questionam. Até certo ponto é saudável assim proceder, mais saudável ainda é conhecer de perto a situação.

Há algum tempo foi copiosamente veiculado um vídeo no qual atrizes e atores da Rede Globo apresentam, de certo modo, os efeitos da construção da Usina de Belo Monte. Repito: o vídeo foi fartamente divulgado, anexado a mensagens de indignação pelas redes sociais.

Cacique Raoni, líder caiapó na região do Xingu.
Que não "chora ao saber que Dilma liberou o início
da construção de Belo Monte", como diz o suspeito
boato, mas por um parente.
Ora, a polêmica de Belo Monte remonta a décadas correntes. E o empreendimento já começou. Mas, para além do seminário nota 5 dos globais, muitas questões estão em jogo.

O acerto do fornecimento de energia. Usinas hidrelétricas produzem energia limpa sim. Esse é um ponto positivo da construção de Belo Monte. Enquanto observamos o risco nuclear da construção de Angra 3, contra a qual os globais não produziram vídeo algum, geração de energia limpa é a alternativa.

O erro socioambiental. Aqui reside o primeiro erro de Belo Monte. Na região da Bacia do Xingu residem 28 etnias indígenas, quase 20 milhões de hectares e cerca de 20 mil índios. Além do impacto ambiental em grandes proporções com o alagamento, os índios residentes precisarão abandonar a região e Altamira já vê sua criminalidade e marginalidade aumentarem. Inicialmente o projeto de Belo Monte traria mais danos ambientais, reformas foram feitas, mas ainda há muito com o que se preocupar.

O erro público. Pouco diálogo houve com as comunidades indígenas do Xingu e com os ribeirinhos. A Funai os ouviu, já o Congresso Federal não, ainda assim autorizou. Mesmo sem as condicionantes ambientais para a construção de Belo Monte, o Ibama também autorizou. A “Licença de Instalação Parcial” emitida pelo órgão no começo desse ano foi contrária à própria existência do Ibama, que deveria fiscalizar o integral cumprimento das condicionantes.

O erro político estrutural. Em janeiro de 2008 o presidente Lula nomeou Edison Lobão para o cargo de ministro de minas e energia. Um advogado. Mais do que isso, um PMDBista com longa trajetória pela nossa já conhecida quadrilha ARENA-PDS-PFL-DEM. O erro foi político estrutural porque obedeceu ao péssimo hábito do presidencialismo de coalizão. Lobão é cacique e administra um setor técnico vital para o desenvolvimento do país.

O erro cultural. Questões como a de Belo Monte nunca foram amplamente divulgadas no Brasil. Em 1980 a Eletronorte iniciou estudos de viabilidade técnica na região de Altamira. Em 1989 houve o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, já com protestos e claro sinal de desagrado dos locais com a construção da usina. Nenhuma novela contou essa história, e as informações passadas pelos jornais jamais te colocaram a par da situação e solicitaram sua mobilização.

O erro político. Há muita coisa envolvida em Belo Monte, mas pelo nosso histórico erro cultural, pouco sabemos e, desinformados, pouco pudemos fazer até então. Há interesses econômicos de construtoras, há interesse governamental de geração de energia, há interesses partidários em desgaste público de adversários, há interesse de sobrevivência dos residentes nos locais. E a mobilização começou tarde e de forma lamentável.

Reconquistamos a democracia há mais de 20 anos. Desde então muita coisa tem acontecido e sempre tivemos oportunidade de repensar o país. E ainda temos. Angra 3 e Belo Monte estão sendo construídas, o código florestal está sendo votado a conchavos no congresso, índios e camponeses têm sido assassinados por serem contra os interesses econômicos dos grandes e culturalmente fomos educados a não olhar para tudo isso. Esses acontecimentos não cabem no horário nobre.

Na próxima vez, não espere uma celebridade aparecer com meias-verdades para se mobilizar. E não acredite em qualquer informação veiculada em redes sociais. Comece a tornar sustentável sua mobilização socioambiental. Ou não só Sobradinho vai virar mar, mas também a Grande Volta do Xingu e a nossa consciência coletiva.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A decência do abstrato


"O Pensador" do escultor francês
Auguste Rodin.

Retomando a nociva secção do saber em tecnologia e ciência humana, julgo adequado sempre ressaltar o papel desta última na vida prática. Quanto àquela, não há equívoco quanto ao seu valor concreto, afinal ela limita-se à práxis.

Particularmente, me motiva essa empreitada a velha e equivocada ideia de que, no âmbito das humanidades, pouco se pode fazer de palpável, de sensível. Jaz aí um terrível engano que, não só limita o acesso aos subsídios que a filosofia e as ciências humanas podem prover ao viver coletivo, como também promove um refúgio às digressões intelectualoides dos semideuses filósofos abstratistas.

Durante boa parte da tradição filosófica ocidental, a questão que impelia filósofos como Hegel, Kant, Platão, Descartes, Aristóteles, Berkeley e tantos outros era a que concernia à forma do conhecimento, à gnosiologia. Muitos dos que hoje se formam em filosofias, psicologias ou sociologias se refugiam em teorias e máximas contemplativas para não agarrarem com as unhas suas responsabilidades ante as lamentações oriundas da realidade material.

Má fé, meus caros, num vocabulário “sartreano”. O que quero dizer com todo esse palavreado é que, ainda hoje, muitos que têm o poder de propor mudanças significativas e o conhecimento para pensar em alternativas mais justas e sustentáveis à coletividade, preferem vender livros discutindo a moralidade do mundo. Meras teses e antíteses contemplativas, inúteis devaneios teóricos et similia.

Nessa onda se encontram os acadêmicos contestadores de qualquer coisa, contanto que permaneçam platônicas suas discussões. Quando surge um evento polêmico, lá está o contestador acadêmico a botar lenha na fogueira, menos por promover uma discussão frutífera do que por desfilar suas pompas de erudição. Às favas com a erudição, nobres doutos!

E a classe pseudo-intelectual, a da má-fé do pensar por si própria, rende louvores aos semideuses da aparentemente ilustrada contestação, por mais que essas ponderações não tragam benefício algum.

Recentemente o renomado Luiz Felipe Pondé argumentou, na sua coluna de segunda na Folha de S. Paulo, que a característica das ciências humanas é quase não ter utilidade prática. Qual seria, então, a utilidade da utilidade teórica, não fosse sua obrigação moral com a prática? O filósofo, que é “contra um mundo melhor”, ostenta um malabarismo de teorias baldias sem se responsabilizar pelo seu prestígio na praça.

A fala de Pondé tenta dar um xeque na frutífera discussão sobre polícia, Estado, sociedade e educação que aflora na FFLCH. De um lado o debate sobre os aparelhos de estado, sua consequência prática e a educação, colocando Pondé e a inutilidade prática de sua produção num lugar só dele, de outro o praticamente (de prática) inútil discurso de Pondé reproduzindo a inutilidade de suas teorias contemplativas.

Pensamos em como mudar o palpável ou seguimos o caminho de Pondé e trocamos farpas argumentativas que nos rendem louvores da pseudo-intelectualidade mas não mudam a condição social de ninguém?

A intelectualidade se reproduz no plano das ideias, nos colóquios sobre teorias que valem a um grupo específico ou outro. Refúgio de muitos filósofos abstratistas. É mais fácil e menos comprometedor escrever sobre algo impensável que não traga frutos tangíveis do que se responsabilizar pela sua erudição e botar a mão na massa. Até porque, politicamente, a era do rabo-preso assombra os pensadores de horário nobre.

Muito abstrato isso tudo? Pois bem, pensemos e ajamos para melhorar nossa vida coletiva, em vez de debater a animalidade do desejo ante o fatalismo humano ou qualquer enleio divagante que o valha. Pois o meditativo das ciências humanas tem, inexoravelmente, dever moral ante os prantos da práxis. E a decência do abstrato está em existir para o concreto.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Reificação do alunado paulista


Pôster de Modern Times (1936), filme
em que Chaplin estava inserido no mercado
de trabalho, mas não podia ter aulas de
democracia. Foto: IMDB
Não há, no léxico, palavra mais traiçoeira que “progresso”. E o progresso vem mesmo do trabalho, como lembrava Adoniran. Mas que trabalho? Que progresso?

Há máximas veiculadas pela tradição socioeconômica que enaltecem o trabalho baseadas no modo de produção dessa mesma tradição, como “O trabalho engrandece o homem”, mas que trabalho é esse?

O trabalho assalariado surgiu com a expansão da produção e do consumo de mercadorias provocados pela Revolução Industrial. Até então a atividade produtiva era doméstica e, antes disso, artesanal, envolvendo tanto o artesão quanto o aprendiz. O capitalista, proprietário dos meios de produção, tal como o conhecemos, vem do nascer das fábricas.

Karl Marx (1818-1883) em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 explica a situação do artesão que vê sua produção ser dizimada pela pujança da nascente fábrica. Restam apenas ao artesão duas possibilidades: vender sua capacidade produtiva ao capitalista ou morrer.

Duro dilema, mas o artesão vendeu sua capacidade produtiva. Troca seu trabalho, sua atividade vital, por dinheiro. “E o que é a vida senão atividade?” expõe Marx na obra supracitada. A essa venda da atividade vital do trabalhador, Marx, grosso modo, dá o nome de alienação. Venda, troca, o único produto que o trabalhador possui é sua atividade, que se torna mercadoria. O trabalhador se torna mercadoria, é “coisificado” ou reificado.

Ora, há anos tenho acompanhado pesado investimento, por parte do Governo do Estado de São Paulo, em formações técnicas, tecnológicas e cursos geradores de emprego. É quase o tecnicismo educacional dos anos 70, de chumbo.

A política de expansão das Fatecs, Etecs e a criação do “Via Rápida” contrastam com o pouco prestígio de cursos onde o pensamento de Marx, e de qualquer outro teórico da política e sociedade, é veiculado. Não tenho acompanhado a mesma expansão de cursos de humanas, ciências sociais, ciências políticas e formações afins.

Concordamos, apagão de mão de obra qualificada exige formação de trabalhadores aptos. Mas, e o pensamento crítico, permanece esquecido? É melhor permanecer, já não basta o que tem provocado na USP com a “fedidíssima e decadente FFLCH”, como disse o politizado de horário nobre Marcelo Tas.

Política educacional pode ser cruel se não a analisarmos em seus detalhes ideológicos. Há anos o governo de São Paulo tem investido na formação para secretariado, soldagem, especialização em gestão empresarial e afins nas Fatecs; mecatrônica, química, calçados, móveis, tecelagem, hospedagem  e afins nas Etecs; ajudante de cozinha, pintor, maquiagem, pizzaiolo, operador de máquinas para transformação de borracha, eletricista instalador e afins no “Via Rápida”.

Há oportunidade para todos, mas para ser assistente de logística portuária, soldador básico ou eclético e tratorista agrícola. E para alternativas menos mercadológicas, como ser um cientista político, jurista, um sociólogo, para profissões que pensem a sociedade para além de seu valor de uso?

A segregação é silenciosa, a reprodução da vassalagem sutil e a produção do pensamento crítico é abafada. A própria educação é reificada nesse processo. Como é que poderemos ter aula de democracia se faltam os cursos para isso?

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

“Ninguém está acima da lei”, e por trás?

O aforismo disciplinar por excelência, o axioma da ordem, verso indispensável de qualquer ária da moral e dos bons costumes. Cidadãos de bem, podeis deitar vossas cabeças ao travesseiro sem receios, pois “ninguém está acima da lei”!

A princípio a fala do governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB/SP) inspira segurança. E segurança inspira policiamento, “a Rota nas ruas”, como ainda lembra Paulo Maluf que tenta, mas não consegue atualizar seu perfil na Interpol. Não foi só a fala do governador paulista, o coro é engrossado pela decisão judicial, pelos ordeiros de plantão, pela imprensa má informadora e pelos clientes mal informados dessa velha imprensa.
Foto: CulturaMix

Implícito. Acima da lei ninguém, ou quase ninguém, mas e por trás? Estamos subentendidos que a função da polícia num local é manter a ordem, evitar “desinteligência”, defender a propriedade e disciplinar, de maneira tácita ou coercitiva, a depender do indivíduo etc., etc.

Presume-se a lei para todos, de todos para todos, preferencialmente. Estado republicano de direito. No entanto, foro privilegiado, imunidade parlamentar, altos encargos com honorários e refinamentos afins fazem a balança pender pra um lado, não um lado que está acima da lei, mas por trás. Dura Lex, excelentíssimo! Isso o senhor não diz?

A plácida garantia na frase do governador omite o desarranjo da balança. E não só omite os tribunais de exceção para sua classe, como também oculta o abissal descontrole dos agentes da lei e, sobretudo, encobre aqueles que, por estarem por trás, são a lei.

O déficit habitacional ameaça estourar? Não importa. A lei, através da juíza Maria Rita Rebello Pinho Dias, dá reintegração de posse à Cohab, vão os agentes executar a lei e colocar o povo na rua. O jornal Estado de S. Paulo investiga e noticia a Operação Faktor da PF contra Fernando Sarney? A lei, cuja graça agora é desembargador Dácio Vieira, proíbe qualquer reportagem sobre as investigações, a lei censura. A lei impõe reajuste, por parte dos parlamentares, de seus próprios vencimentos sem critério claros?  Bonificam-se os que elaboram leis, em detrimento de investimentos mais republicanos. Quão bem preparados são os agentes da lei, que executam, criam milícias e hoje revistam alunos dentro de uma universidade?

Profusão de exemplos, caro concidadão. A própria resistência à corregedoria do CNJ por parte de muitos magistrados pode apontar como há muitos que não estão, nem querem estar, sob a lei, a despeito da máxima de ordem enunciada pelo governador paulista.

Os agentes da lei protagonizaram, há alguns dias, um exercício com grande contingente no Vale do Anhangabaú, bem próximo aos manifestantes do #OcupaSampa. O que a lei foi fazer ali, mera formatura?

Formatura de policiais militares no Vale do Anhangabaú,
próxima à ocupação do #OcupaSampa Foto:#OcupaSampa
Não preciso lembrar que na história da nossa república “Ordem e Progresso”, a lei já invadiu, a lei sequestrou, violentou, a lei torturou e matou. Tudo em nome da mesma segurança assegurada hoje. A lei exclui, segrega, estigmatiza, distingue. Ainda!

Os que protestam na USP não defendem simplesmente o direito de se drogarem, como alegam muitos telespectadores. O que está em jogo são os desarranjos pouco democráticos da lei e do poder. Tanto do abuso de autoridade mascarado pela lei criadora de ordem, quanto das arbitrariedades governamentais que defendem, sabe-se lá, que modelo de educação, de disciplina e segurança.

Enquanto isso, os desinformados leais à iníqua imprensa viciada, exaltadamente, bradam: “maconheiros, baderneiros, arruaceiros!”. E com toda sua conformada fleuma classemedista, reproduzem o mantra “dura Lex, sed Lex”

Ad infinitum!

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Movimento Estudantil e Movimento Estudantil de esquerda...

A dificuldade da esquerda em lidar com a democracia é histórica. O próprio Marx foi bem reaça quando não deixou os anarquistas participarem das Internacionais Comunistas, por exemplo. A esquerda (não só) estudantil herdou isso.

Também pudera, estamos perdendo em quase todos os aspectos: a desigualdade social, a heteronormatividade, o software-proprietário, o racismo, o oligopólio midiático, a proibição da maconha, a proibição do aborto, o consumismo, a meritocracia, o Estado não-laico, o novo estádio do Corinthians, a PM na Universidade, a seleção do Mano, o programa do Datena etc.

Estas e tantas outras são demandas justíssimas e um dia a mais que vivemos sob estas deformidades sociais, mais difícil fica para que revertamos a situação. Mas o fato é que em 68 o inimigo vestia verde oliva, era fácil identificar o adversário, e não seria visto como exagero bradar "abaixo à repressão!"; "contra a ditadura!" e outros motes do não muito vasto repertório do Movimento Estudantil. Mas uma coisa é brigar por direitos em um Estado de Exceção; outra coisa, num Estado (ainda policial, mas minimamente) de Direito. Negar isso é dizer que a reabertura foi inútil, o que é absurdo. Os vermelhos precisam dar braço a torcer um pouco.

Hoje a situação é outra. Nem toda esquerda compartilha das causas que cito  acima, até por serem tantas e tão diferentes. Daí ficam duas opções pros grupos: Andar só entre amigos ou tentar uma conciliação em busca de poder político, deixando pontos polêmicos em discussão e tocando os consensos.

A segunda opção é politicamente mais funcional, mas é uma utópica dentro da esquerda. Haja vista a recente eleição de Chapa pra tocar o Movimento Estudantil da USP (a partidarização e a cultura do Racha a colaboraram muito pra minar a representatividade da esquerda, majoritária, que quase perdeu para a única chapa da direita, integrada).

Tentar resolver tantos problemas sem apoio, sem se flexibilizar, é impossível. Todas essas fragilidades da nossa sociedade não surgiram do nada, nem são naturais. Querer resolver tudo de uma vez, só por que pudemos identificar os problemas é ignorar a complexidade deles.

Não bastassem os problemas do Movimento Estudantil de esquerda, ganha voz uma direita estudantil (é a velha oposição da galera dos "cursos de mercado" contra o pessoal dos "cursos pra sociedade", com infinitas ressalvas nessa distinção). O "cansei", o "movimento contra a corrupção", do "Jogo Justo" e até ações mais sérias como o Ficha Limpa (que a esquerda endossou) são manifestações dessa direita em sua origem (se acha que a dualidade não existe, pare de ler o Fukuyama e vá buscar algo que preste).

Pois é, estudantes de direita. E a representação deles é legítima e deve ser respeitada. Mas, se a galera não se entende nem com oposições dentro da esquerda, escondendo-se em jargões e etiqueta, a reação à manifestação da Direita dentro do feudo que domesticava há décadas era óbvio.

Vêem? Este é o pau de amassar ideologias
E a cobertura destes eventos da imprensa (que tem audiência) apoia quem se aproxima de seus ideais. A direita sabe jogar nas regras do jogo, ela que as fez. Mudar o cenário precisa de ações radicais em certos momentos, mas quando o Movimento Estudantil de Esquerda já está fragilizado, usar a linguagem do Datena em vídeo, usar os velhos artifícios da ocupação da reitoria e da greve dos estudantes, tão questionados pela sociedade, é jogar pedra na diagonal da Dama.

Se a Universidade busca alternativas e soluções para a sociedade, então lá é lugar para que o Estado policial seja questionado, e quiçá corrigido. Mas a luta para que isso aconteça não pode ultrapassar as regras do Estado de direito que nós mesmos buscamos. Democracia tem seus ônus, mas como podemos questionar os abusos que fazem em nome dela se nós mesmos não arcamos com esses revezes?

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Ágora ou nunca


Jean-Jacques Rousseau
No ano de 1753, o pensador genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) se dedicou a responder uma questão proposta pela Academia de Dijon, com direito a premiação, sobre qual seria a fonte da desigualdade entre os homens e se essa desigualdade seria, por assim dizer, aprovada pela lei natural. Rousseau não venceu o concurso, mas a civilização ocidental foi laureada com uma obra que até hoje deve ser apreciada.

Um pouco mais cedo, antes de Cristo, a civilização grega gozava de um sistema político que perdura por mais de 200 anos depois da morte de Rousseau: a democracia. A ágora era o espaço público principal da pólis: mercadorias eram comercializadas, julgamentos populares eram realizados e, sobretudo, era o lugar onde todos os cidadãos (homens adultos livres, na época) discutiam política e tinham direito a voz e voto. Mais precisamente, como conta Aristóteles na Constituição de Atenas, a assembléia, ou ekklésia, era o lugar em que os cidadãos se reuniam para deliberar os destinos da pólis.

A principal tese de Rousseau em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens é a de que, quanto mais “aperfeiçoado” e distanciado está o homem de sua condição natural, mais a desigualdade tende a crescer. Num dos melhores adágios dessa sua resposta ao concurso da Academia de Dijon, Rousseau professa que todos os males dos homens em sociedade vêm muito mais de seus erros do que de sua ignorância. Para o ilustre pensador genebrino, que também alicerça a crítica à propriedade privada antes de muitos, a sociedade corrompe o homem natural e é a geradora da desigualdade.

Um pouco mais tarde, ao cair de 2011 d.C., os interessados no destino do mundo se surpreenderam com a decisão do governo grego de realizar um referendo para aprovação do pacote de austeridade, honrando um dos melhores legados que aquele povo nos deu. A surpresa durou pouco: o referendo foi suspenso logo em seguida. A ágora grega de outrora perdeu seu caráter democrático para a perversão do progresso gerador de desigualdades. Rousseau, que também escreveu n’O Contrato Social a imprescindibilidade da voz e voto de cada cidadão nos destinos da sociedade, hoje poderia reprochar com a humildade que lhe era peculiar: “Je vous ai averti!” (Eu lhes avisei!).

Foto: Sapo.pt

Na Grécia de ontem, homens adultos e livres decidiam diretamente os destinos da pólis, pois eram cidadãos. Na Grécia, e no mundo, de hoje, os bancos, investidores e as grandes corporações, “1%”, herdaram a cidadania de todos e concentram para si os destinos de todo o planeta. Um irretocável e invejável aperfeiçoamento da democracia!

Século a século a ágora ruiu. Agora, ou a reconstruímos, ou ficamos com o “nunca” desse depravador progresso. Pois os ventos da história, via Éolo, hão de sempre ecoar e nos provocar:

“Je vous ai averti!” 

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Partidarismo e doenças

O brasileiro, assim, genérico, não é o que cada um de nós gostaria.

Cada cidadão tupiniquim achamos que o brasileiro deveria ter um raciocínio mais crítico, um costume de leituras maior, de melhor qualidade, que deveria ver menos tv, passar menos tempo no Facebook,  beber vinho branco ao invés de cerveja.
Uma série de melhores costumes. Um povo mais sublime, mais elevado. Um povo qual nossa própria imagem e semelhança.

Porca ilusão, nem a imagem que o espelho nos esfrega na cara reflete um sujeito desse tipo. Esse sujeito dos melhores costumes não é um brasileiro. Somos qualquer outra coisa menos burocrática e talvez até indolente, mas outra coisa.

E uma outra coisa seguramente melhor do que essa coisa tabela de cossenos de melhores costumes. Contudo, nossas peculiaridades não nos fazem perfeitos. E isso é suficiente para que nos afete a "síndrome de terceiro mundismo", expressão que por si só já revela um punhado de preconceitos.

Como gostaríamos que o brasileiro, desleixado, gostasse de política e não fosse tão suscetível ao paternalismo de determinados políticos. Que o voto fosse ideológico e não personalista. Será que, para o bem e para o mal, o brasileiro já não é assim?

Daí, o cara vê o país prestigiado pelo mundo e sua mesa menos minguada que na década passada, mas, se vota no cachaceiro que é responsável por isso - sem tirar o mérito do sociólogo e de sua equipe de economistas que anteriormente vestiam a faixa presidencial - é apenas uma vítima do populismo, não é crítico. Talvez o cabresto esteja em outras vistas e é o crítico que não consegue enxergar.

O voto personalista remete a eleição federal, mas e quanto as outras instâncias? quem vota no Serra votaria em outro partido se Alckmin fosse o candidato escolhido pelo PSDB? Quem vota no PT mudaria seu voto se Mercadante for candidato no lugar de Marta? Estamos partidarizados sim.

Prova disso é o câncer de Lula e as manifestações de ódio polarizadas entre os que aprovam o projeto petista e os seus adversários. Estamos, como na bicentenária democracia estadunidense, divididos entre duas posições políticas reais e várias outras de efetividade quase imaginária. Chegamos a este nível.

Temos um Tea Party, temos um partido de centro que pensa que é esquerda e outro conservador que pensa ser de centro. E temos hooligans defendendo as duas bandeiras. O sérgio Buarque dizia que somos um povo cordial, que é uma espécie de eufemismo para dissimulado. Não somos mais. Vide o "Partidarismo Esclarecido", que não respeita nem doente. Valeu a pena?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

“As sombras de tudo o que fomos nós”


Foto: ?

“Se você quiser me destruir, vou te destruir primeiro”. Teria sido essa indelicada declaração, segundo consta, que inaugurou a desforra de Gilberto Kassab a Rodrigo Garcia, até então sua eterna metade da laranja. Chega um momento na vida a dois em que a fidelidade é abalada, em que surgem terceiros, e as mágoas irrompem do não-dito. São as escuras nuvens do divórcio.

São Paulo assiste passivamente aos “DR” do alto clero da política local. A briga na corte é forte, ameaça a dinastia tucana e confessa a debandada dos oportunos integrantes do PSD. Anos de afeto, jingles e presentes abalados pelo “salve-se quem puder” de Kassab e seus novos amigos.

Já não se sabe, aqui em baixo, quem governa a maior cidade do país. A descaracterização governamental é refletida nas políticas confusas e eleitoreiras do prefeito que, apesar do que faz, agora se diz socialista. São Paulo passa mal, e somada à enferma cidade está o processo diaspórico de inauguração do PSD.

E os paulistanos, devem estar indignados com toda essa picuinha, não? Não. Não se percebe. Enquanto a vaidade esfria a brasa de Kassab e Garcia, estamos no trânsito ou na balada, temos os nossos amores pra cuidar, eles os deles.

O PSD conseguiu nascer, parto dificultado por Rodrigo Garcia (tu quoque?) e seu DEM. Não são tão adversários hoje, aquela ternura sempre fica, não fica? O partido de Kassab esvazia o DEM. Mas Rodrigo e seus parceiros não vão dar ao prefeito o enorme prazer de lhes ver chorar.

O estoicismo que cabe aos barões do DEM também não importuna Kassab. O que ele quer é seguir em frente, esquecer que aquela união, por mais afetuosa, poderia lhe render rejeição popular. Flerta com quem tem aprovação do público votante.

Depois de muitos anos juntos, foi difícil até para a mãe de Rodrigo Garcia aceitar a separação. As coisas são assim mesmo, crianças. Se não se cultiva a relação, a menor das brisas desfolha a árvore, galho por galho.

Os ânimos já amainaram e Kassab ainda acha que está fazendo o que é certo, pela política e pela cidade. E assim, os sabores e dissabores das paixões da fidalguia paulista sobressaem ante as necessidades da plebe paulistana. Estamos acostumados mesmo a torcer pelos amores impossíveis de novela e a esquecer os nossos próprios desejos.

sábado, 22 de outubro de 2011

CBF: Covil Brasileiro do Fisiologismo


Já não é segredo, nem novidade, que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) é um tonel de anomalias. A entidade é responsável por uma das maiores alegrias do brasileiro, o futebol, instituição cultural nacional, quiçá mundial. Sua atual estrutura e seu regimento não fazem jus ao novo e crescente movimento por transparência e democracia, que abala a cultura oligárquica que tanto tem perdurado em solo brasileiro.

Foto: Agência Estado

É possível conhecer a estrutura da instituição pelo seu site. Conhecemos o nome do presidente, vice-presidentes regionais, secretário geral, diretores e toda a hierarquia detalhadamente desenhada. Inclui-se nessa apresentação, a posição destacada das federações estaduais, se é que podem ser legalmente assim definidas.

Trata-se de uma instituição privada, gozando dos direitos de associação que a Carta Magna assegura em seu Art. 5º (XVII). E que fique claro que essa liberdade assegurada pela constituição se refere a “associações para fins lícitos”. Juridicamente a CBF tem, logo, direito de auto-organização e de auto-regulação.

Pouco se sabe, entretanto, do estatuto e consequente regimento interno da CBF, uma vez que não estão acessíveis no site. Mas é de quase conhecimento público que o presidente da entidade é eleito por votação. Têm direito ao voto as 27 federações filiadas à CBF, apesar de Roraima misteriosamente não constar na estrutura interna, mais 24 clubes.

O obscurantismo por trás da eleição do presidente é tal que alguns fatos atraem a atenção:

- Na última eleição, em 2008, votaram as 27 federações estaduais e presidentes de 24 clubes, quais sejam esses times: a escuridão não me permitiu averiguar;

- Essa mesma eleição foi alterada em 18 de abril de 2006 pela Assembléia Geral da CBF para que, assim que eleito, o próximo presidente perdurasse no cargo até 2015, sendo que a eleição segue normalmente o intervalo de 4 anos;

- Na eleição de 2008, Ricardo Teixeira enfrentou chapa concorrente de Carlos Alberto Oliveira, então presidente da Federação Pernambucana de Futebol, falecido no final de agosto de 2011. Uma das propostas de Carlos Alberto era a de ampliar o sufrágio para eleição do presidente da CBF, com participação dos clubes da Série B, Série C e da Copa do Brasil, uma vez que todos esses torneios são organizados pela CBF;

- Favas contadas: a dinastia Teixeira persiste até 2015. Ricardão pode levantar o dedo e afiançar: “La CBF c’est moi!”.

Dentre os 5 vice-presidentes de Teixeira, consta o nome de Fernando Sarney, que também ocupa os cargos de filho do homem e de alvo da Operação Faktor da Polícia Federal, operação omitida pela TV Mirante, afilhada da Globo em São Luís e motivo de censura por parte do desembargador Dácio Vieira do TJDFT ao jornal Estado de São Paulo.

No início desse ano o deputado Anthony Garotinho (PR/RJ) iniciou empreitada na casa para a criação de uma CPI da CBF, e conseguiu coletar assinaturas. A CPI investigaria irregularidades sobre Teixeira ser um dos dois sócios, como pessoa física, do Comitê Organizador Local da Copa de 2014. Teixeira teria 0,01% das ações enquanto a outra sócia, a CBF, teria os 99,9% restantes.

Alguns deputados mantiveram a assinatura e outros retiraram as suas, talvez, em troca de uma camisa da seleção ou coisa que o valha. Um dengo de Dom Teixeira. Veja alista.

Poderia arrazoar aqui todas as denúncias de irregularidades: as negociatas de bastidores entreCBF e Globo, dívidas com o Fisco, lobby na Casa para não instalação da CPMI Corinthians/MSI no trágico episódio do clube, as doações irregulares a campanhas políticas, o esquema milionário de propina, o recente patrocínio à copa dosjuízes federais e grandes feitos afins.

Sem contar o tradicionalmente desorganizado calendário da CBF, com partidas oficiais marcadas em datas FIFA e durante as olimpíadas de Londres, prejudicando os clubes brasileiros que cedem seus jogadores à seleção.

No entanto, com receio da prolixidade, atenho-me a mostrar, com a clareza que esse covil me permite, o quanto o futebol brasileiro, de interesse público, é refém do negócio privado, corporativista, corrupto e fisiologista.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Por quem esses sinos dobram?


Declaradamente aberta a temporada de caça à corrupção. Esta puta corrupção, profanadora dos deveres políticos e direitos democráticos, perversora da honestidade e do convívio social, aliciadora do bem público e demolidora dos preceitos civis!

Mas o abstratismo que impera nos recentes protestos contra a corrupção é um mal a mais à sociedade brasileira, divorciada, pelos segredos, da “sociedade política”. Quem é essa atroz e infame corrupção, essa vil depreciadora de sabe-se lá que moral política? Ao que tudo indica, a nossa corrupção traja terno, é vulgarmente conhecida por “político” e desvia verbas.

Mas, por essa descrição, são abundantes os suspeitos! Devo ficar alerta a todo engravatado que se diga político? Ou devo empenhar minha anêmica memória política a desvendar os traços faciais e a graça do engravatado que elegi parlamentar? Oh, dilema!

A indignação é o primeiro passo, caro leitor eleitor, rumo a mudanças profundas. Foi assim em toda a história da humanidade. Assim a democracia tomou contornos ante a opressão aristocrática na Grécia clássica. Assim a burguesia enterrou o poder espiritual e fez valer seus interesses no princípio do capitalismo comercial. Assim muitos foram presos, torturados e assassinados no Brasil, antes da conquista de um regime democrático através do voto direto. Quase ontem.

No entanto, a indignação sem culpa, sem a responsabilidade política, é cega. E é a cegueira que guia boa parte dos indignados que excomungam a corrupção nas ruas do Brasil. Há protesto lúcido em meio a esse carnaval, como aquele que exige o fim do voto secreto no Congresso. No entanto, dedos precisam ser apontados, há algumas faces bem conhecidas pra essa seva corrupção.

À guisa de provocação, você sabe o que fazem os parlamentares nos quais você depositou seu voto, esse soberano direito civil?

É bom saber. Pois, no fim, você poderá estar protestando contra o engravatado político no qual você votou e, por tabela, condenando sua própria corrupção.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Comercial da Caixa, a cor do Machado Assis e o Politicamente Incorreto

Negros foram mercadoria por milênios. Os direitos civis não possuem dois séculos. E já tem gente reclamando de exageros politicamente corretos. É como se as minorias da população estivessem abusando do direito de pedir por respeito. Tanto que entrou para o vasto fundo cultural do senso comum a ideia de que o mundo sofre com uma "ditadura das minorias" e que ser politicamente incorreto é defender a liberdade de expressão.

Nessas, a Caixa fez um comercial com um Machado de Assis branco. Reclamou-se, bateu-se de todo lado na produção. Refizeram-no. No link, alguns comentários mostram uma galera achando que é excesso de "politicamente correto" refazerem o comercial. Veja a nova edição:



Os politicamente incorretos consideram bobagem, que a discussão é inútil, um exagero. Agora imagine Clarice Lispector, a quem cogitaram Meryl Streep para interpretar, vivida por uma atriz de pele negra. Imagine crítica e repercussão. Não é bobagem.

Madonna e Mary Lambert sabiam muito bem desse potencial polêmico quando contrataram um ator negro para representar Jesus (que seria loiro, de olhos azuis e cabelos lisos e ondulados, a despeito de sua naturalidade geográfica). Ainda que há 22 anos atrás e envolvendo fatores religiosos, a polêmica gerada pelo videoclipe - muito mais interessante que as polêmicas causadas por vestidos de cantoras, diga-se - revelam que não se trata de uma simples questão de "politicamente correto".

Quantos não são os vloggers e apresentadores a menosprezar essa e tantas outras causas por partirem de um PONTO DE VISTA "hetero-branco-rico-cristão"? O curioso é que a primeira vez que um humorista é de fato politicamente incorreto, desta vez com uma filha de cantor, esposa de gente poderosa, a conversa mole da liberdade de expressão cai por terra.

Evidentemente, o humorista é mais um mané que acha que há um excesso de pudor, muitos limites para a lirve-expressão. Justo por causa  de uma frase na qual não foi preconceituoso. Estúpido, inadequado, entre outros qualificadores, mas ele não manifestou um preconceito. Quando foi, assim como Boris Casoy o fez ao falar de garis, não teve grandes problemas. A Band defende esse tipo de "liberdade de expressão".

Que haja. Na hora em que todos forem respeitados da mesma forma e/ou houver piadas sobre brancos, ricos, cristãos e heterossexuais da mesma forma que há com negros, pobres, gays e (dis)crentes em outras formas de sagrado, o politicamente correto não vai ser mais necessário.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Comissão da Verdade (que der tempo de ver)

O adágio popular sobre o tamanho das pernas da mentira não parece levar em consideração a História do Brasil. Cordiais por tradição, não há um conflito institucional que não tenha sido resolvido em conchavos. E todo e qualquer conchavo esconde a verdade do povo. Verdade que os representantes públicos acreditam que o povo não deve conhecer.

Lógica defendida por aqueles que rechaçam os vazamentos do Wikileaks. Lógica que escancara o fracasso vergonhoso da representação democrática, já que é impossível que a opinião de um povo seja representada em um assunto que ele desconheça seus pontos cruciais.

Tanto reclama-se da apropriação do dinheiro que financia o Estado, mas a verdade também é um bem público. Quando um político resolve seus problemas a portas fechadas, a democracia fracassa sem nem mesmo ter a chance de acontecer. Não há como se representar a quem se aliena. Isso não é diferente de patrimonialismo, uma apropriação privada de informação pública.

(E há quem defenda a legalização da profissão de lobista, que consiste em convencer um político, geralmente por meio de argumento$ sólido$ e troca de favores pessoais, a aprovar determinada medida que beneficiará grupos interessados. Assim, o político nega a participação política a seu eleitorado para representar interesses privados. É a apropriação da decisão do Estado, é roubar sua voz ao invés do seu dinheiro).

Uma manobra dessas foi supostamente necessária para garantir a Comissão da Verdade. Numa "teleconferência" realizada  em um banheiro. É utópico achar que hoje seja possível governar sem sigilo, mas quando justamente os segredos de Estado estão sendo postos á prova, transparência deveria ser uma exigência mais rígida.

É doloroso pensar que, todo o sacrifício que inclui tamanha "relativização" da ideia de representatividade, além das flexibilizações exigidas pelo DEM (Bisneto dos líderes da ditadura, pra quem não sabe: ARENA, PDS, PFL, DEM), que quer uma comissão com pessoas com condições de agir com imparcialidade - e indica o milico Nelson Jobim para participar do grupo (!?) - é só pra aprovar um cala-boca.

O STF não quis bancar o salvador da pátria e a Lei de Anistia foi mantida. Políticos criminosos da ditadura ainda estão no poder. A mídia ainda dá espaço a apresentadores ex-para-militares e colunistas que debocham das máculas do nosso passado recente. Em contraponto, teremos uma comissão da verdade para apurar Duas décadas de ditadura em ...dois anos.

Não há problema, já que a comissão será extensa, e contara com sete membros. Dá trinta meses para análise de cada membro. Acostumados com regalias, militares não precisam depor se não estiverem dispostos. E também possuem um "saída livre da prisão", uma espécie de imunidade para militar que os anistia antes de qualquer julgamento.

Parece bastante difícil de conseguir alguma coisa, né? Mas ainda é útil. Os militares podem não pagar por seus crimes, mas responderem por suas atrocidades, pelo menos, já seria alguma coisa. Todavia, o resultado dos trabalhos pode nem mesmo vir a público, depende do que considerar a comissão. Ou seja, toda aquela tensão pra, possivelmente, acabar tudo como estava.

O Estado deu dois anos pra comissão e eu acho pouco, mas na verdade pode ser ainda menos. Justiça que tarda, falha. E falha mais gravemente quanto mais tardar. Romeu Tuma já foi. Maluf, Sarney e Ustra ainda estão aqui, mas por quanto tempo? Que esses trabalhos andem logo pra conseguir fazer o máximo que se lhes permite: apontar o dedo na cara de quem cometeu abusos contra os direitos dos cidadãos. Se demorar, não vai servir nem pra isso.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

“A raiva e a fome é coisa dos home”

A crescente crise de fome no chifre da África, região nordeste do continente que ganhou esse nome pelos contornos que lembram o chifre de um rinoceronte, revela que a seca é o menor dos males somalis. Décadas de instabilidade política, de fundamentalismo religioso, de fracassadas intervenções internacionais humanitárias e militares e, mais fundamentalmente, de imperialismo europeu sobre a África, desenham a caótica situação da fragmentada e faminta Somália.

Somali carregando criança subnutrida ao quartel da AMISOM. Foto: Stuart Price/ONU

A Somália, como todo o resto da África, foi vítima do neocolonialismo europeu, especificamente com ocupações britânica (1822) e italiana (1885). O imperialismo das potências europeias foi acordado na Conferência de Berlim (1884-1885), a partir daí se instituíram regras de ocupação e domínio do território africano. Não nos enganaremos se apontarmos essas potências como primeiras responsáveis pela série de guerras civis, pela alastrada pobreza e pela alta incidência das mais variadas doenças que acometem os povos africanos até hoje. A partilha dos territórios entre as potências europeias não respeitou peculiaridades culturais e étnicas, e a delimitação arbitrária desses domínios juntou tribos inimigas e separou as aliadas.

É inegável que Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Itália, Portugal, Reino Unido e outras potências participantes da conferência têm uma dívida histórica com o povo africano. Além dessa partilha despótica, ainda exploraram no continente riquezas naturais e mão-de-obra escrava.

A influência europeia na Somália foi predominantemente inglesa, Somaliland ao noroeste, e italiana com a Somália italiana, no resto do território. Durante a Segunda Guerra Mundial a área foi palco de constante conflito entre os dois países europeus, o Império Britânico encabeçando os países aliados e a Itália de Mussolini como um dos países do eixo. O cenário político no pós-guerra suscitou discussões do futuro da Somália, se continuava com ocupação britânica, se retornava à ocupação italiana ou se construía a independência somali.

Em nova decisão europeia de 1948, dessa vez com determinação maior dos aliados vencedores da guerra, o território de Ogaden foi entregue à Etiópia, área que colocaria somalis e etíopes em guerra na década de 1970.

No entanto, com uma rara feliz intervenção da ONU, o território somali foi confiado à Itália na década de 1950. Com considerável auxílio econômico da ONU e sob administração italiana, a Somália conheceu um grande desenvolvimento educacional e de infraestrutura, tendo uma década com poucos incidentes e relativa estabilidade.

O nascimento da República da Somália, com a independência do país programada por convenções internacionais, aconteceu em 1960. Governado pela Liga de Juventude Somali, sob o comando do presidente Aadan Cadde de 1960 a 1967, o pais se associa à URSS e à República Popular da China, com acordos políticos e militares. A região do chifre da África, já com seus conflitos internos, acaba sendo palco da polaridade da Guerra Fria, uma vez que a Etiópia passa a ser militarmente alimentada pelos EUA. Mais uma vez interesses alheios influenciam na região, fomentando a já grande hostilidade entre somalis e etíopes.

Depois de um golpe de Estado (coup d’etat) e num país ainda dividido em muitos clãs, Siad Barre chega ao poder em 1969 e declara a Somália um estado socialista, a despeito da real situação política, social e econômica do país. Com um regime personalista, fundamentado num certo entendimento do socialismo com influência do islã, Siad Barre aproximou a Somália da URSS e da China. Seu regime durou até 1991. Nesse ínterim, Siad Barre invadiu o território de Ogaden em 1970, iniciando nova guerra contra a Etiópia, resultando num corte de relações entre a Somália e antigos aliados como a URSS e Cuba. A Etiópia permaneceu com o controle do território de Ogaden, e o desgaste da guerra somado à ação de rebeldes no norte da Somália tornaram os dois países incapazes de lidar com a fome e a seca que castigaram a região na década de 1980. Ainda responsável por violentas repressões internas de seu regime, Siad Barre foi deposto pela Revolução Somali, comandada por rebeldes do norte do país.

O já enfraquecido território somali começa a se fragmentar novamente com o início da Guerra Civil em 1991. A instabilidade com a queda de Barre e ação militar de diferentes tribos piora uma já grave situação humanitária na Somália. O território da Somaliland (o mesmo do domínio britânico de outrora) se declara independente, apesar de não ser reconhecido como tal, o país enfrenta uma anarquia e a partir de 1992 a ONU volta a intervir em seu território.

Mãe com seus filhos em campo de refugiados de Dadaab. Foto: Brendan Bannon/MSF

A UNOSOM I foi a primeira intervenção da ONU com o intuito de levar ajuda humanitária e coordenar um cessar-fogo no sul da Somália. Das potências européias que partilharam a África, apenas a Bélgica participou desse esforço multinacional.

A UNITAF substituiu a fracassada UNOSOM I. Dessa vez a condução das mesmas operações ficou sob comando dos EUA de Bush pai. A intervenção ianque com a UNITAF é motivo de discussão, uma vez que houve relações entre Siad Barre e indústrias petrolíferas dos EUA em território somali. Longe de querer insinuar qualquer coisa, fiquemos com a suspeita.

A UNOSOM II seguiu, inclusive com a união entre tropas americanas e paquistanesas, enfrentando a resistência militar de Mohammed Aidid, um dos “senhores da guerra” e ex-general de Siad Barre. Em outubro de 1993, mais de mil somalis, um grupo de rangers americanos e soldados paquistaneses foram mortos por Aidid e seus soldados em Mogadíscio, numa batalha retratada no livro e filme “Black Hawk Down”. Os EUA abandonaram a Somália logo em seguida, e em 1995 a própria ONU encerrou suas atividades no país.

De 1991 até 2006 a Somália não teve um governo unificado, mas domínios separados comandados pelos “senhores da guerra”. As condições sociais foram e continuaram sendo as piores possíveis, com difícil acesso à água potável e alta taxa de mortalidade infantil. Em 2004 o país também foi atingido pelo tsunami do sudeste asiático, com a morte de 298 pessoas.

Em 2004 foram criadas, numa conferência em Nairobi, as Instituições Transicionais Federais (TFIs): a Carta Transicional Federal (TFC) documento que organiza certos princípios dessas instituições, mas sem um caráter constitucional; o Governo Transicional Federal (TFG) como o poder executivo, que teve a eleição de Abdullahi Yusuf Ahmed como presidente por decisão do Parlamento Transicional Federal (TFP), instituição legislativa. Uma tentativa de restabelecer a união política da Somália através de um governo interino apoiado pela comunidade internacional.

Paralelamente a esse esforço, ganhava força na Somália o Conselho Supremo das Cortes Islâmicas, um poder judiciário baseado nas leis islâmicas da sharia, que se tornou influente no território somali com a dissolução da unidade nacional em 1991. Em 1994 os primeiros tribunais se estabeleceram ao norte de Mogadíscio. A partir de 2006, passa a se chamar União das Cortes Islâmicas (UCI) com caráter miliciano, o grupo tem maioria de integrantes do clã Hawiye.

Em 2006 é formada a Alliance for the Restoration of Peace and Counter-Terrorism (ARPCT) com “senhores da guerra” de Mogadíscio. A Aliança nasce em reação à crescente autoridade da UCI na Somália. Os dois grupos se enfrentaram repetidas vezes em 2006. Há suspeitas de que os EUA de Bush filho tenham financiado os “senhores da guerra” de Mogadíscio, com receio de que a UCI defenderiam figuras da Al-Qaeda, mas permanecemos com a suspeita.

Refugiados somalis a espera de vacinação em acampamento do MSF. Foto: Brendan Bannon/MSF

Até o final de 2006, a UCI não só conquistou Mogadíscio, como também Jowhar, Balad, a portuária Hobyo, a base de piratas somalis Harardhere e Kismayo, além de outros territórios. Os “senhores da guerra” se enfraquecem e a UCI se fortaleceu militarmente. Ao final de 2006, forças do TFG se aliam a tropas etíopes e entram em confronto com a UCI que, diante da intervenção da Etiópia e talvez de mais gente, clama jihad contra seu vizinho.

Ao final de 2006 uma nova guerra de grandes proporções toma conta do território da Somália. O TFG aliado a tropas etíopes, se junta também a tropas somalis dos territórios de Puntland e de Galmudug. A 20 de dezembro de 2006, a capital provisória do TFG é ocupada por tropas etíopes que, depois de uma semana, repele a investida da UCI na cidade. Em 28 de dezembro, o TFG e as tropas etíopes tomam o controle de Mogadíscio. Um dia antes, alguns líderes da UCI se resignam, dentre eles Sharif Sheikh Ahmed e Hassan Dahir Aweys, que formam dois lados opostos do Alliance for the Re-Liberation of Somalia (ARS), grupo dissidente da UCI.

Durante esse período, o TFG recebeu, além do apoio militar etíope, tropas da Missão da União Africana na Somália (AMISOM), com soldados do Burundi, de Gana, Malaui, Nigéria, Quênia e Uganda. A UCI, do outro lado, se aliou à Eritréia e supostamente a outras nações árabes, como o Egito. Além disso, os EUA participaram da ofensiva etíope, uma vez que forças da Al-Qaeda estavam ao lado da ICU. De dezembro de 2006 a janeiro de 2009, a Somália contabilizou a morte de mais de 16 mil civis, além dos militares, e quase dois milhões de exilados.

Em junho de 2008, assinaram um acordo político em Djibuti o primeiro ministro do TFG Nur Hassan e Sharif Ahmed, líder da ARS moderada. Com esse acordo, apoiado pela ONU, as tropas etíopes deixaram suas bases no território somali para o TFG, para tropas de paz da União Africana e para grupos islâmicos moderados liderados pela ARS. O TFP ganhou cadeiras para a oposição e Sharif Sheikh Ahmed foi eleito pelo mesmo TFP o novo presidente do governo de transição.

No entanto, a ARS era dividida. Sharif Ahmed encabeçava um lado que apoiava um acordo pacífico com o TFG. A outra ala do ARS era liderada por Hassan Aweys, que posteriormente comandou o Hizbul Islam, grupo insurgente que apoiou a UCI contra o TFG e as tropas etíopes e se tornou opositor armado do TFG com o já presidente Sharif Ahmed. Nos anos 1990, Aweys comandou o famoso Al-Itihaad Al Islamiya, grupo fundado pelo igualmente famoso Osama bin Laden.

Após a tomada de Mogadíscio pelo TFG e tropas etíopes, a UCI se dispersou e houve a criação de vários grupos. Além dos dois ARS e do Hizbul Islam, foi criado o Al-Shabaab, grupo que declarou guerra a Sharif Ahmed quando eleito presidente, controla o sul da Somália e tem como seus aliados membros da Al-Qaeda.

De outubro de 2009 a dezembro de 2010, o Hizbul Islam e o Al-Shabaab entraram em conflito algumas vezes, com vitória deste último. Hassan Aweys e seu grupo se fundiram ao Al-Shabaab, que hoje é o principal grupo de oposição ao TFG e desconfia de intervenções estrangeiras na Somália. Por esse motivo, o trabalho humanitário, como do MSF, é dificultado pelo comando do Al-Shabaab, que controla o sul do país, região mais afetada pela seca.

O território da Somália ainda é muito fracionado: ao norte as regiões de Awdal e Somaliland se declaram independentes; o nordeste, o centro e algumas partes do sul são controlados por tribos e regiões autônomas pró-unificação; o TFG controla uma pequena região ao redor de Mogadíscio e uma extensa faixa do centro ao sul do país é comandada pelo Al-Shabaab e seus grupos.

Há seca em boa parte do chifre da África graças a um fenômeno conhecido por La Niña. A escassez de chuva e a consequente dificuldade de plantio afetam regiões do Sudão e do recente Sudão do Sul, norte e nordeste de Uganda, regiões de Ruanda, boa parte dos territórios da Etiópia e do Quênia, todo o território do Djibuti e da Somália e chega a afetar também o Iêmen, do outro lado do Golfo de Aden. Segundo esse mesmo mapa, a região considerada catastrófica compreende toda a faixa comandada pelo Al-Shabaab, no centro-sul da Somália.

Criança subnutrida com sua mãe em acampamento do MSF em Dagahaley no Quênia. Foto: Brendan Bannon/MSF

Refugiados somalis têm atravessado a fronteira e chegam ao já lotado campo de refugiados em Dadaab, no nordeste do Quênia, onde há uma base do UNHCR. O centro-sul da Somália, região mais pobre do país, ainda é controlado pelo Al-Shabaab, que resiste a intervenções internacionais, dificulta o acesso a alimentos aos somalis residentes nessa região e sustenta oposição armada ao TFG. Este, por sua vez, se reuniu recentemente e construiu um plano para a criação de um governo constitucional na Somália.

ONGs internacionais como o MSF trabalham na região, a estimativa é de que 750 mil pessoas morram de fome nos próximos quatro meses. Há relatos de que os insurgentes queimam alimentos doados e mesmo matem profissionais em missão humanitária. A região, além de recorrentes conflitos, recebeu pouco investimento de órgãos como a ONU e mesmo das potências europeias que cortaram o mapa da África no século XIX.

Então, caro leitor, na próxima vez em que alguém lhe informar que o problema da Somália é a seca, desconfie.