sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Conexión Caracas


Foi necessária uma iminente queda política de Chávez, ou mesmo sua quase morte, para que a Venezuela fosse tão falada pela alta casta da imprensa nativa. Não que Caracas jamais tenha recebido tanta atenção quanto agora. Recebeu. Mas uma atenção limitada ao indisfarçável descontentamento quanto à continuidade do governo chavista. Sobretudo pelo jornalismo da Rede Globo que, se efetivo fosse, apoiaria e laurearia um golpe direitista, golpe “democrático”, ao Palácio de Miraflores, tal qual ocorrido com Lugo no Paraguai.

O brasileiro médio, bombardeado pelo cartel da informação (e por cartel da informação entenda a indexação de um mesmo ponto de vista por diversas empresas da comunicação, por força do interesse corporativo), condena Chávez como um ditador. Aludido a conclusões irrefletidas, esse mero receptor de informações que consome a notícia pensa que há, em território venezuelano, um despotismo como o sírio de Assad ou mesmo um regime como o fascista de “Il Duce” Mussolini.

Quanto ao “despotismo” eleito pelo povo, ideia tão paradoxal quanto à de um golpe “democrático” como o paraguaio, vale frisar que Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA e Nobel da paz por seu instituto de monitoramento de eleições, considera o pleito venezuelano o melhor do mundo. E quando aquele seu colega, ou um jornalista desses de 50 tons do mesmo ponto de vista, disser que “democracia é alternância de poder”, argumente que essa equação semântica não fecha e faz tanto sentido quanto uma “ditadura” eleita por sufrágio.

Em texto bem esclarecedor divulgado recentemente, o economista estadosunidense Mark Weisbrot mostra que as hostilidades a Chávez pela imprensa se fazem presentes em outros cantos do mundo. No artigo, Weisbrot mostra como um jornalismo desinformador faz projeções absurdas com base no partidarismo e na alucinação.

O economista também protagonizou um estudo sobre o crescimento econômico e social da Venezuela com Chávez. Com média anual de mais de 13% no aumento do Produto Interno Bruto (PIB), redução acentuada da inflação, aumento do investimento em serviços públicos como saúde e educação, redução da pobreza de 54% para 26% e da pobreza extrema em 72%, cabe perguntar se a insânia antichavista consegue convencer o povo de que a Venezuela precisa de um governo diferente.

Na quarta-feira última (16/01), dia em que Obama decretou medidas contra a cultura bélica nos EUA, Arnaldo Jabor reclamou que a “consciência social coletivista” jamais passou por esse país. Mas que “consciência social coletivista” habitava os reclamos de Jabor? Foi tocante o jornalista condenar o individualismo refratário à intervenção do Estado, como ocorre nos EUA. Que "democracia moderna", segundo o próprio e mesmo jornalista, quer Obama para a América? A de contínua hostilidade à democratização latino americana?

Hei de lembrar que, como em outro texto tentei indicar, quando o já batido substantivo "democracia" vem acompanhado de um adjetivo, suspeite.

Que democracia seria essa, a “moderna”, de Jabor? A das oligarquias da informação, como a da Rede Globo, que omitem excelentes indicadores venezuelanos e tentam passar uma eleição exemplar por golpe? Desinformam seu público alegando que um país democrático é uma ditadura? Jabor viaja, delira, na pompa do próprio discurso. E só não é um pensar masturbatório porque agrada seus superiores na Rede Globo. No mais, é reflexão severamente deslocada da realidade.

E esse delírio foi respondido pela Embaixada da República Bolivariana da Venezuela, em nota. No entanto Jabor continua cineasta, trabalhando na fantasia. Mas um cineasta a agradar seu patrão, ou seu salário, na confusa metonímia das relações sociais sob o pano do capital. Arnaldo Jabor produz comercialmente, como todas as peças da Rede Globo, não cultural e artisticamente com crítica produtiva e esclarecedora.

A alta casta da notícia, o cartel da informação, nem sob pena de perda de concessão, nessa nossa tão oligárquica e paranoicamente ameaçada liberdade de imprensa, noticiaria que a Venezuela com Chávez se tornou território livre do analfabetismo. Ou a Bolívia com Evo Moralez. Ou o Equador com Rafael Correa. Nem há de noticiar as boas novas que vêm do Uruguai com Mujica.

Assim como a “Tela Quente” não passará “South of the Border”, documentário elucidativo de Oliver Stone (“Natural Born Killers”, “Wall Street”, “Platoon”, “U Turn”, “World Trade Center”) com presidentes de esquerda eleitos na América Latina depois da ascensão de Chávez na Venezuela.

The Revolution Will Not Be Televised”, outro excelente documentário sobre o golpe sofrido pela Venezuela em 2002. Não só a revolução, mas mesmo um reformismo social-democrata tende a não agradar aos Citizens Kane modernos.

Felizmente, uma espécie de ley de medios conquistada com a abertura à informação na internet ameniza o impacto do oligopólio da mídia. E com isso, não dependemos mais daqueles velhos padrões informativos que orbitam um só e mesmo propósito. Em Caracas e no resto do país, a preocupação do povo venezuelano não é a de se livrar de uma ditadura, mas sim a de viver uma.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Um país feito assim

     
Foto: Sebastião Salgado

Há poucos anos comprei e li um dos livros mais acurados e notáveis que já habitaram meu modesto acervo. Em “Brasil e Estados Unidos: o que fez a diferença” (Civilização Brasileira), o jornalista Ricardo Lessa cumpre magistralmente o que o lacônico título anuncia. Retomei recentemente a leitura desse trabalho que esmiúça, em paralelos históricos do desenvolvimento das duas nações, os fatores principais que as colocaram em rumos tão desiguais.

Também me motivo a escrever este texto pelo inexaurível “complexo de vira-lata” que ganha novos contornos, virtuais, em tempos de redes sociais. Tema já apreciado neste blog. É importante saber por que somos o que somos, quem nos fez como somos feitos e quem continua a nos manter do jeito que somos mantidos. É do filósofo espanhol George Santayana (1863-1952) a emblemática máxima: “um pueblo que olvida su pasado está condenado a repetirlo”.

E por não nos darmos conta do nosso passado, por preguiça ou má-fé, carregamos de maneira maçante essa pose de “narciso às avessas”, evocando Nelson Rodrigues, “não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima”, continua o carioca dramaturgo recifense. Se não encontramos esses pretextos, encontremos, sublinhemos e nomeemos os que nos nutrem desse famigerado complexo de “Ah, é Brasil mesmo” no nosso tão presente pretérito.

E é à história que devemos ir, à formação da nossa realidade atual.

Portugal, quando cá aportou, não tinha verdadeiramente o propósito de cá aportar. Os planos de Cabral eram de chegar às Índias, para alimentar o próspero comércio de especiarias, rentável à coroa portuguesa. Logo o Brasil se tornou uma colônia de exploração, recebendo degredados e sem propósitos maiores que enriquecer o império português no início do mercantilismo. Já o Mayflower, que aportou em Cape Cod no Massachusetts 120 anos mais tarde que Cabral, levava peregrinos ingleses que escapavam de uma coroa corrupta e cheia de vícios, um povo que ansiava uma nova vida num novo mundo.

No Brasil, fomos criados em raízes absolutistas, que amarraram a colônia a Portugal, e em raízes católicas, que cegaram iniciativas de insubmissão nesta vida terrena. Quando do “achamento” do Brasil, reinava na Santa Igreja o Papa Alexandre VI, um Bórgia, família famosa pela série de crimes como simonia, estupros, corrupção, assassinatos e ainda papas fartos de proles.

Os EUA viveram 156 anos de colônia, com relativa autonomia dos estados do norte durante todo esse período. Aqui fomos colônia por cerca de 300 anos, e mesmo nossa primeira constituição fora assinada por el-rei D João VI, mantendo poderes absolutistas centralizados no império dos Pedros, o primeiro e o segundo, até a proclamação da república em 1889, mais de um século depois dos EUA.

Ainda assim nossa república não foi estável como a ianque. Nasceu fundada por militares, num golpe, com ministros monarquistas e sem participação popular. As revoltas emancipacionistas que surgiram em nossa história foram pouco apoiadas e duramente reprimidas, como a conjuração mineira, a revolta dos alfaiates na Bahia e a revolução pernambucana.

Participação popular, na realidade, nunca foi regra na nossa história. O Brasil fora sempre comandado ora pela coroa lusitana e suas crias reais, ora por uma elite agrária, latifundiária e exploradora que reina ainda por vastas áreas da atual república federativa e democrática, sobretudo no legislativo. O corporativismo grassa nas altas instâncias de nossa pátria amada, desde o século XVI.

A independência do Brasil foi se tornar um absolutismo próprio. E olhe lá, pois D. João VI foi imperador titular daqui. Enquanto nossos vizinhos americanos, como Venezuela, Argentina, Paraguai, Chile e Equador se livraram da coroa espanhola, com Bolívar e San Martín, e já viviam experiências republicanas, nos emancipamos em uma monarquia bragantina. “Além da sífilis, é claro”, herdamos o fisiologismo europeu e um imperador “que hás de respeitar” el-rei seu papai. O povo que se curve.

E continue curvado pois, como dito, não foi diferente depois de proclamada a república. Fundada por militares, a primeira dissolução do Congresso demorou apenas dois anos para acontecer, o Marechal Deodoro foi o pioneiro da ditadura militar brasileira e, favas contadas, estimulou também o coronelismo na terra brasilis. Prudente de Morais foi o primeiro presidente civil do Brasil, mas fortemente apoiado pela oligarquia do café, que também elegeu Campos Sales, paulista, que indicou outro paulista para sua sucessão, Rodrigues Alves, que teve um vice mineiro que seria o próximo presidente, Afonso Pena, e inaugurava-se o oligárquico café-com-leite.

A tentação de ir aos pormenores da história é grande. Mas o fato é que, proclamada a república, tivemos um período militar, outro cujo governo foi das oligarquias do café-com-leite e em seguida mais um golpe que inicia a ditadura getulista. Trocando em miúdos, tivemos experiências democráticas somente na metade do século XX, mesmo assim sufocada por outras duas décadas de ditadura militar, das mais infelizes páginas da nossa história. Nossa república democrática estável, ou aparentemente estável, só acontece há menos de 30 anos. A história coletiva de um Brasil soberano é muito recente.

E mesmo assim, conquistada a redemocratização parcial em 1985, nosso cambaleante presidencialismo foi liderado por um detrito da ARENA, José Sarney, um quase czar do Maranhão, e seu nepotismo. Em seguida, já com a nova carta magna, foi eleito pelo poderio midiático o belo e carismático Fernando Collor de Mello, outro resquício da ARENA e reencarnação do primeiro Pedro imperador, pra revelar que nossa sina de fidalguia deve responder a planos espirituais. O “caçador de marajás”, neoliberal e privatista, fora impedido da presidência em 1992 por acusações de corrupção.

Após Itamar, vice de Collor, é eleito um intelectual à presidência. FHC que, apesar da estabilidade econômica do plano real, impulsionou uma onda de privatizações com visíveis prejuízos ao erário, tornou o país refém do capital estrangeiro com danos à produção nacional e se aliou às oligarquias rurais e aos resíduos da ditadura, que ainda compõem quadros das coligações de seu partido.

Com Lula o cenário mudou, ma non troppo, haja vista o poder que as oligarquias ainda detêm nos legislativos e nas alianças com um demasiadamente inflado PT centro-esquerda.

Somos filhos do escravismo com a monocultura exportadora. Um país de ciclos: da cana, da mineração, do café, da borracha e por isso de uma industrialização drasticamente tardia. O imperativo do desenvolvimento fabril só venceu as resistências da oligarquia rural daqui no meio do século passado. E o latifúndio ainda dá as cartas nesses largos rincões do Brasil, assassinando camponeses, expulsando indígenas de suas terras e pervertendo a legislação ambiental em favor de seus bolsos. Essa turma ainda reina na bancada ruralista em Brasília e na grande mídia de rádio, TV e impressos.

É fato que nossa segregação racial é mais leve do que nos EUA. Aqui parece mesmo ter-se estruturado uma estratificação socioeconômica, mais do que puramente racial. Mas ainda assim é notória a disparidade de oportunidades, sobretudo de direitos, entre brancos e negros, por mais que uma elite cínica talvez ache que certas coisas sejam obras do acaso.

Fomos colônia escravista e monocultora importando manufaturados por quase todo nosso enredo, subjugados por ditaduras militares, absolutismos e oligarquias do latifúndio. No Brasil a “sorte” sorriu para as elites agrárias no norte, centro e nordeste e para alguns imigrantes bem sucedidos nos mais urbanizados sul e sudeste. A conta dessa história não pode jamais ser cobrada do povo, pois é o povo quem sempre sofreu e ainda sofre com o fardo da história.

Nosso atraso em relação a outras nações é resultado de uma histórica e forte plutocracia. Durante todo o período da colônia, vice-reino, império e por maior parte da república, fomos dirigidos pelos mais ricos, por elites defendendo seus interesses. E ainda é assim, mesmo com a ascensão de um metalúrgico ao poder.

As elites controlam os meios de comunicação, como as grandes Globo, Folha, Abril, Estado e a agropecuarista Band; controlam as leis em Brasília com os direitistas PSDB, DEM, partidões disformes e incongruentes como PMDB e PSD e partidos menores que abrigam interesses pouco coletivos em ideologias muito abstratas; e controlam também os interesses do capital estrangeiro com grandes multinacionais e seus lobbies, sobretudo o fiscal.

Se a Educação no Brasil ainda é fraca, isso é decorrência da história. O ensino público, de qualidade e universal, nunca foi do interesse das elites que conduziram a grã-canoa brasileira por 5 séculos. O trabalhador teve que trabalhar, Educação é um negócio perigoso pra quem está no poder, iluminação política crítica derruba regimes e emancipa almas que se tornam conscientes de seus fados. Desse modo, foi difundida a “cultura da ignorância”, apontada por Florestan Fernandes, pela elite às massas durante nossa história.

E essa conta não pode mesmo ser debitada do povo brasileiro, sempre alheio ao seu destino político. Se hoje temos falhas, corrupção, baixos índices na Educação e Saúde, temos também um pequeno grupo a quem não confiar mais o destino da nação. O Brasil foi feito assim, por uma elite plutocrática, oligárquica, corporativista, segregacionista, clientelista, patrimonialista, exploradora e usurpadora de direitos.

Uma elite que ainda está aí, sustentada pela preguiça e má-fé políticas das classes alta e média, mais preocupadas em continuar ecoando a oca lamúria “vira-lata” em vez de assumir suas responsabilidades dentro da inescapável coletividade nacional. Fomos feitos assim.