sábado, 9 de julho de 2011

"Sociedade política" e a república dos esquecidos

O ano de 2011 tem sido de fôlego adicional à engavetada democracia mundial. Durante muito tempo a sociedade civil, em geral, aceitou de bom grado as condições políticas acertadas entre certos governos e seus sócios. Hoje, porém, é possível observar um renascimento de movimentos coletivos exigindo o que Tarso Genro chamou de “democratização da democracia”.

A idéia não é nova, pelo contrário, é o fundamento da democracia de fato. Numa análise mais atenta a tratados de ciência política e consultas a pensadores como Rousseau e Tocqueville, constatamos que os movimentos coletivos pelo mundo lutam por princípios óbvios. E se o governador gaúcho usa mui habilmente essa expressão, é porque a democracia já deixou de ser democrática há algum tempo.

Temos acompanhado as revoluções árabes, encarando regimes ditatoriais e se organizando, sobretudo, via redes sociais. Levantes populares exigindo democracia, enfrentando repressão e a violência desmesurada de seus próprios governos com pouco apoio internacional.

Também o espanhol ¡Democracia Real YA!, do movimento 15M, que critica um modelo de política que privilegia uma minoria em detrimento das necessidades do povo. Com a recente crise financeira mundial, tem crescido a adesão pela Europa.

Tahrir e Puerta del Sol são exemplos mais notáveis de que, pelo mundo, diferentes povos têm questionado o regime de suas nações e procuram fazer a res (coisa) ser realmente pública. Os recentes ataques hackers no Brasil não são, nem de longe, algo parecido. Assim como movimentos exigindo redução de impostos para produtos eletrônicos, pura e simplesmente.

É preciso aproveitar mobilizações como a marcha da liberdade, e colocar em xeque a “sociedade política” e a democracia oligárquica que predomina no nosso modelo de sistema representativo. É preciso, principalmente, ressignificar a política no Brasil. Debates e atenções, por parte da sociedade civil, não devem ser exclusividades dos anos de fim par, eleitorais. É preciso agir, lembrar e trazer o poder do público também para os anos de final ímpar, época em que a democracia costuma ficar esquecida, por eleitos e eleitores, e engavetada por aqui.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

“Pelo sonho é que vamos”

As coisas que vemos são claras, entretanto exige-se um esforço distinto para observá-las com a acuidade que a matéria demanda. E não é um esforço que encerra um diferencial quantitativo, mas qualitativo, numa postura que não ignora centelhas de meias-verdades e fagulhas de abjetos interesses que um espírito menos preocupado costumeiramente deixa escapar.

O poema de Sebastião da Gama, cujo verso inaugural intitula este texto, poderia bem ser um hino de batalha daqueles que, como nós neste blog, combatem uma ainda lúgubre realidade política e social brasileira. Afinal, “comovidos e mudos” muitas vezes, pelo sonho é que vamos.

“Chegamos? não chegamos?”

Sacamos e empunhamos nossas críticas e nossos anseios sociais de nossos princípios políticos. Não são rigorosamente os mesmos, ainda bem. Contudo reconhecemos uns aos outros, em meio à fumaça e o fogo da guerra que diariamente travamos contra ‘políticos’, mídias, “a opinião pública líquida” e quimeras semelhantes. Somos frustrados muitas vezes, ossos do ofício, mas como versam os versos desse nosso hino “Haja ou não haja frutos, / pelo sonho é que vamos.”

“Basta a fé no que temos.

Basta a esperança naquilo

que talvez não teremos.”

Reconhecemos resultados nesse velejar, mas alertamos que ainda há muito a navegar. Numa terra que deu à luz as mais diversas caras, etnias, religiões, numa terra que assistiu seus filhos protagonizarem as mais diversas batalhas, aqui travamos as nossas em utopias e vírgulas, perseguindo ideais e delatando anacronismos. Conhecemos algo da nossa história e escrevemos quando a percebemos se repetir, como farsa, lembrando Marx.

“Basta que a alma demos,

com a mesma alegria,

ao que desconhecemos

e ao que é do dia a dia.”

E nesse muito ainda a navegar vamos sempre encontrar cerração, dúvidas, obstáculos do desconhecido. No entanto sabemos que nós (eu, tu, ele/ela) fazemos a nação. E por nos acreditarmos protagonistas da nossa história coletiva, gritamos pra que sejamos ouvidos. Gritamos, sobretudo, pra abafar os sedutores cantos das sereias que sempre alienaram, e ainda alienam, muitas almas brasileiras. Mas tentamos ser mais sedutores, e com a alegria (sarcástica, há que reconhecer) proclamada por Sebastião da Gama em seu poema, enfrentamos o que conhecemos e o que desconhecemos. E pelo sonho caminhamos, afinal...

“Chegamos? não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos.”


terça-feira, 28 de junho de 2011

Poluídos e despudorados

Hoje fui acometido por uma dessas felizes inspirações que reúnem, em duas notícias aparentemente diferentes, uma análoga lógica. E não se fazia referência, nem numa nem n’outra, à similaridade que as casavam tão apaixonadamente.

Na primeira dessas notícias, destaca-se o calvário do poder público paulista em despoluir o Rio Tietê, hoje um córrego que mal reflete a luz do sol. Não obstante o investimento bilionário (da ordem dos R$ 3 bi) na tentativa de limpeza do rio, parece não existir vontade política para que todo esse investimento dê resultado. Enquanto máquinas mostram aos transeuntes das marginais que há trabalho sendo feito, diversos bairros e cidades do arredor continuam despejando seus esgotos no saudoso Tietê.

A outra nova, dessas que a gente lê e não dá tanta importância, é a de que o “DEM rediscute imagem de ser ou não de ‘direita’”, ipsis verbis. Pegou a relação? Sempre que leio notícias desse calibre, tendo a pensar nas “Scènes de la vie politique” da antológica “La comédie humaine” de Honoré de Balzac. Se o escritor francês respirasse os ares de nosso tempo, ia lhe faltar décadas de vida para registrar tanta inspiração que a política brasileira emana.

Mas sobre a comédia política desses trópicos já dei meus apontamentos, e a notícia é satisfatoriamente cômica pra que eu volte agora a esse picadeiro. Continuemos com a correnteza da feliz inspiração.

O ponto de convergência, que você certamente sacou, é a situação parecida em que se encontram o poluído DEM, certamente antigo e talvez futuro PFL, e o despudorado Rio Tietê. O partido, que já não ostenta pudor há muitas eleições, maquina secretamente em suas convenções maneiras de parecer mais limpo ao eleitor, sem que consiga se desvencilhar de sua essência elitista e senhoril.

O Tietê, pelo contrário, faz navegar a céu aberto os detritos paulistas, sobretudo os governamentais. Confundem-se em suas pastosas e inconfundíveis águas, se é que ainda há águas, os restos do descaso político e das necessidades naturais dos particulares. É, tal qual um partido político decadente, um lugar onde o interesse público e a necessidade privada se embaraçam.

E entre poluídos e despudorados, perdoar-me-ão os puristas logomáquicos, a merda continua a boiar...

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ministro da Verdade

Quando o escritor britânico George Orwell sentou em sua cadeira para escrever sua obra-prima, imaginou um catastrófico cenário futurista em que uma espécie de mescla fascista-socialista dominaria o mundo, suprimindo liberdades civis e até mesmo cortando pela raiz o pensamento crítico das pessoas. Todo canto do planeta era vigiado pelas câmeras do governo, os olhos do hipotético ditador Grande Irmão (Big Brother, para os íntimos), que aliás emitia ordens à população assim que achasse necessário. Enfim, uma espécie Pedro Bial sem aquela filosofia toda.

Nesse mundo catastrófico, o Ministério da Paz promovia a Guerra, o Ministério da Fartura rateava parcamente rações para a população enquanto o Ministério da Verdade nada mais fazia do que reescrever páginas de jornais e revistas antigas de modo a alterar a História e mostrar como tudo que acontece é ótimo (por exemplo, "a ração de 200 gramas de arroz aumentou para 300 gramas", sendo que na realidade há um mês a cota era de 400 gramas).

Orwell foi brilhante, mas errou num detalhe. Chutou um ano qualquer para o título de seu livro e eternizou o ano de 1984. Mal sabia ele que se escolhesse 1985 acertaria o ano em que uma espécie de ministro da Verdade herdaria a presidência de um país por aí, desses que saiam de uma Ditadura Militar.

José Sarney parece necessitar dos serviços do Ministério da Verdade para validar algumas declarações recentes. Para o senador, não havia necessidade de exibir fotos da época do impeachment de Fernando Collor quando de sua queda do poder em 1992 na galeria de fotos da história do Senado. "Não é marcante" comentou, talvez em um mesmo tom em que vociferaria "Ninguém aqui sabe de ato secreto" em uma daquelas câmeras/microfone espalhadas pelo país fictício de Orwell.

Agora, o maranhense defende que documentos estatais secretos assim permaneçam por toda a eternidade. "Não podemos fazer Wikileaks da história do Brasil", afirma ele, sob o argumento que a atitude poderia abrir feridas diplomáticas.

Sarney é o homem do partido da Ditadura que foi eleito como primeiro presidente civil pós-Ditadura. O homem que institui o congelamento dos preços para que os preços não subissem. O homem do Maranhão que foi eleito senador pelo Amapá.

Pois é. Ele reinventou o Ministério da Verdade.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

STF e seus limites

É uma discussão inconveniente.
O Supremo Tribunal Federal, a quem chamo carinhosamente de STF, vem tomando posições avançadas em debates polêmicos e creio estar ajudando a construir um país melhor.
Direitos são assegurados por essa postura, como no caso do reconhecimento da união homoafetiva e do direito à "liberdade de expressão em marchas", mas há um limite muito diluído que separa uma lógica de Estado democrática que assegure decisões salutares à democracia e uma lógica de Estado que extrapole as atribuições de uma de suas três instâncias de poder que o constituem.

É a realização de uma cidadania utópica ver tão belos direitos serem assegurados, mas se dependerem exclusivamente de uma decisão vertical, impositora, por parte do STF, corremos dois grandes riscos. O primeiro é de não surtir o efeito desejado, um risco que acomete qualquer lei contra-majoritária: se a sociedade não respeitar a lei, e a estrutura do Estado não for capaz de fazer com que seja respeitada, vira letra morta.

O segundo é ainda mais danoso, um STF legislador que seja a materialização da ideologia do sofá : o totalitarismo do "Ditador Bonzinho", que não exija ao cidadão pensar muito sobre as questões políticas e o represente satisfatoriamente em todos os âmbitos da participação política, não lhe atribua grandes responsabilidades enquanto ator político, que resuma seus deveres em uma cartilha de itens pouco exigentes, sem que tenha que sair de sua comodidade.


A participação política é um dever de quem não aceita um Estado desigual e injusto, e a luta por direitos, em suas infinitas formas, devem ser exercidas pelo poder Moderador, que, diferente do que acreditava Dão Pedrinho, deve ser exercido pelo povo, pelos cidadãos.

Contradizendo-me, o povo, por sua vez, é falível e injusto. Representado fielmente num legislativo de 513 deputados federais e 81 senadores, o reconhecimento da união homoafetiva, por exemplo, nunca passaria pelo congresso. Não é exclusividade dos nossos conservadores, já que na França não passou também, e está cada vez mais próxima da democraticíssima Uganda. O STF é avançou muito essa discussão.

Como decidir os limites do judiciário? O STF só deveria legislar para garantir direitos contra-hegemônicos, nunca para restringir liberdades civis. Mas isso é querer que o Estado trabalhe ao meu desejo liberal. Se eu quiser que estes direitos sejam assegurados, tenho que reclamá-los, esperá-los on demand pode ter um preço caro demais.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

No limiar do corrupto

Já começava a se arrastar, para além do que seria necessária, toda a celeuma política e publicitária das acusações ao ex-ministro Antonio Palocci. A Folha de S. Paulo deu o pontapé inicial num dos esportes mais apreciados pelo alto clero da política nacional: guerra de insinuações. A recente demissão foi tardia, mas não “infectou todo o governo” como insinuou o senador Álvaro Dias (PSDB/PR). A crise não é tanto do governo, pois se aplicássemos a lógica relacional da intriga política numa análise mais apurada da história do Brasil, não haveria figura pública que se salvasse. A crise é pessoal do ex-ministro Palocci e, por tabela, é nossa também.

E contra qualquer “J’accuse!” precipitado, de que eu estaria a defender Palocci, defendo, pelo contrário, que tudo seja devidamente apurado e esclarecido, não por deputados e senadores, mas por um órgão competente para esses fins. Roberto Gurgel, Procurador Geral da República, arquivou a representação dos parlamentares oposicionistas sobre a empresa de consultoria, sob alegação de que não há do que incriminar o ex-ministro.

Contudo a oposição ainda quer uma CPI (Bolsonaro deve entrar com representação no extinto DOI-CODI pleiteando interrogatório e tortura), e infelizmente isso ainda há de se alongar demais no congresso, mesmo com a demissão de Palocci. Infelizmente porque o ato tem sido tão prolixo e mastigado, que o público já perdeu o fio da meada do resto da trama.

Temos o péssimo costume, quando se trata de política nacional, de ecoar o já batido sermão das comadres políticas, homens públicos e grandes veículos de comunicação, sem dedicar algum esforço por entender o que realmente está por trás desses discursos.

Ora, a corrupção nestas terras existe desde que o “peito ilustre Lusitano” fincou suas primeiras cruzes por aqui, propagando para o além-mar seus vícios políticos tipicamente europeus. Já passado quase meio milênio, ainda carregamos as cruzes de uma máquina pública enraizada num solo mal cultivado, sedimentado por camadas e mais camadas da mais estéril corrupção. A gente se acostumou à impunidade, ao “jeitinho”, de tal modo que, para cortar esses males pela raiz, vai um bom trabalho, trabalho que interessa a poucos.

Apesar de tudo isso, tendemos ao imediatismo, por puro conformismo e desinteresse público, por idéias fixas e fidelidade eleitoral incondicional ou pela mais miserável desinformação política. Pois desse solo queimado pela corrupção brotaram escassas almas éticas, frutos da resistência às áridas condições educacionais que muitos fizeram questão de conservar no correr das estações e da resistência ao rebanho de agiotas do Estado que pastam, há séculos, nesse solo queimado.

E se você é grande pecuarista, latifundiário, não se sinta vitimado pelas metáforas, são recursos de linguagem apenas. Não ferem nem matam ninguém, não definitiva e literalmente. Aliás, aos desinformados, a corrupção política também tem chacinado camponeses (sinédoque) nos distantes rincões do nosso país ultimamente.

Não espere que todos os parlamentares que entram com representações aos MPs (Ministérios Públicos) e solicitam instauração de CPI na Casa fazem isso com a espada da ética em punho. Só uma minoria. A grande maioria dos parlamentares é capaz de passar toda sua legislatura requerendo representações contra seus desafetos políticos em nome de uma cruzada partidária que só a gente, eleitorado, pode resolver.

E é lamentável como a viciada imprensa no Brasil, sobretudo na política e no esporte, depende de “grandes crises” de quem está no topo. Se não as há, ela continua com suas crônicas moléstias: rabo preso e vista grossa. De um modo geral, a cobertura política se contenta com a guerra burocrática nas instâncias de poder, ou mesmo com o circunlóquio sempre presente nas manifestações públicas de alguns congressistas.

É necessário noticiar que Palocci aumentou consideravelmente seu patrimônio quando deputado, sem dúvida. Mas também há necessidade desses veículos discutirem reiteradas vezes que outras figuras políticas duplicam, triplicam ou quadruplicam seus patrimônios graças a seus poderes parlamentares e mesmo simplesmente por serem parlamentares. Porque isso está à vista de todos.

Diz o bom senso que o enriquecimento não é crime, só quando acontece de maneira corrupta. No entanto devemos ter relativizado a idéia de corrupção no Brasil, nesses séculos de idas e vindas. Em política, nosso “jeitinho” foi ampliando o limiar do aceitável. E enquanto estávamos distraídos com nossos afazeres do dia-a-dia e com as notícias que os jornais sempre escolheram nos dar, aumentar o patrimônio à custa do Estado virou uma prática legal, até honesta, publicamente tolerável e fundamentalmente democrática.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

PLC 122 e uns surtos

O Brasil tem todo o direito de ser a terra do Paradoxo, nós flexibilizamos o conceito de absurdo. A gente é assim mesmo, o mundo que nos engula e o De Gaule que chupe, falaí, velho lobo!
Mas ver gente que prega em seu primeiro mandamento "amar ao próximo como a si mesmo, e a Deus sobre todas as coisas" querendo minimizar as consequências dos crimes de ódio, não há Dreher que contenha o desânimo.

Há um projeto de lei dividindo o país. Como de costume, a divisão é injusta, que tradição é tradição. A PLC 122 quer penalizar os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. E, pois é, isso polêmico, juro!

"Olha que absurdo, os gays vão poder praticar sodomia no altar e se a gente reclamar vai preso!" é mais ou menos isso que CNBB, Silas Malafail, Mogno Malta, Jair Bolsonazi e outros ícones do retrocesso cognitivo chamam de argumento.
Como a lei de proteção para animais é um consenso mais pacífico, chutar cachorro morto deve ser crime. Não dá pra debater a afirmação, seria cruel. Reproduzir o trecho do projeto de lei que reserva o direito ao medievalismo em determinadas circunstâncias deve ser suficiente:
§ 5º O disposto no caput deste artigo não se aplica à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé,fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal.
Mesmo essa ressalva é contraditória e insuficiente, que basta uma garagem e uma fantasia para que se reclame o direito de discriminar pessoas não só por identidade de gênero e orientação sexual, que tanto interessam ou preocupam aos ilustres citados, mas também por raça, cor, etnia, gênero, sexo, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência. É uma brecha perigosa, mas que o liberal projeto precisa deixar para não queimar na fogueira pós-moderna.

O Senador Magno Malta se opõe ao projeto por acreditar que a lei não pode criar um "terceiro gênero". O argumento é igualmente estapafúrdio, mas é emblemático. A definição de Gênero de Malta é restrita a condição física, determinada por Deus. É um direito dele pensar assim, e de todos que sigam religiões afins. Não é direito de nenhum desses, no entanto, negar aos outros o direito de refletir sobre o gênero e considerá-lo como a condição na qual um indivíduo se reconhece e deseja ser reconhecido pela sociedade.



Excelente fotografia de Magno Malta e com possíveis cabos eleitorais (pode isso, Arnaldo?) A foto vem daqui, ó.



Quando o senador e seus partidários se declaram favoráveis à negação do projeto, estão mantendo cidadão em condição de classe inferior.

As leis são convenientemente criadas por uma provável maioria padronizada. Branca, heterossexual, cristã, anglo/eurocêntrica e financeiramente abastada, supostamente representaria toda a população brasileira que ufaniza-se por sua miscigenação. Para complementar o paradoxo, declara-se liberalmente laica e plural, por mais incoerente e improvável que soe.

Essas leis reconhecem cidadãos de segunda classe nas balcânicas minorias que a complexa heterogeneidade humana nos oferece (negros, idosos, muçulmanos, judeus, pobres, cadeirantes et cetera) e lhes assegura parcas ferramentas para minimizar a defasagem de direitos historicamente restringidos, mas nega-as a determinada condição minoritária por ferir seu conceito retrógrado de família, ou seja lá o que for. "Você só pode pertencer à minoria que nós estabelecidos aceitamos".

Se a demissão de alguém ainda puder ser justificada por sua orientação sexual ou identidade de gênero; se a violência a um indivíduo motivada pelo ódio à identidade de gênero não for penalizada de forma especialmente qualificada - qual se dá quando ocorre motivada por ódio à etnia ou raça da vítima, por exemplo - estes cidadãos não estarão recebendo a proteção legal necessária para que sejam reconhecidos como são e como de sejam. Se à outros esse direito é concedido, temos uma meia justiça seletiva e marginalizadora.

Dessa forma, apesar de Malta acusar o projeto de criar um terceiro gênero(?), ele está brigando para que cidadãos pertencentes à minoria GLBTT mantenham-se como cidadãos de uma terceira classe, ou ainda pior, que não sejam reconhecidos legalmente em hipótese alguma. Há 10 anos se tenta mudar isso através do projeto, que vem se atualizando desde então, mas uma década é muito pouco para um pensamento estagnado há dois milênios.

terça-feira, 24 de maio de 2011

amanda gurgel e #preçojusto. A opinião pública líquida.

A baba já molhava a camisa quando os fortes aplausos, pela acústica do teatro, tiram o desacostumado espectador do sono. Ele desperta, considera o figurino dos atores muito bonitos e aplaude, motivado pelo movimento dos pares de mãos em seu redor, sem saber bem do que se trata a peça. Já vai arrumando sua roupa quando a acompanhante lhe adverte:"- sente-se! Esse é o final do primeiro ato, babão!"

Dias atrás, o discurso brilhante da professora Amanda Gurgel excitou o senso crítico da população. Brilhante em sua argumentação e com a eloquência que a dignidade confere à sua oratória, a professora filiada ao PSTU reclamou da leniência com que as autoridades atentam às mazelas da educação pública.

"Por favor, salvem a professorinha!!!" O bordão de Caco Antibes resume o clamor paulatino de colunistas e tuiteiros que sucedeu a divulgação digital do discurso. No youtube, o vídeo já ultrapassa um milhão e meio de espectadores, os quais majoritariamente endossam a manifestação de Amanda.

Seria o caso de incensarmos as mídias sociais por seu caráter potencializador da disseminação do debate político, da crítica e da preocupação com questões sociais. Talvez não, a Internet ainda é democrática em sua capacidade de popularizar discussões e opiniões (logo não o será, no que depender do "casal Flintstone" Ecad e Ana de Holanda).

Felipe Neto, em mais uma de suas ilustres contribuições para a formação do intelecto teenager (já que a palavra adolescente está perdendo o sentido mesmo), fez um video pra criticar os impostos dos produtos eletrônicos. Forte concorrente de Hollywood e do Projac como gerador de celebridades, o Twitter foi o caminho do vlogger, que foi via trending topics ao estrelato.

Discursando pelos mesmos 8 minutos que a professora, o nosso Jhonny Brabinho conseguiu mais de 4 milhões de views e aproxima-se da marca de 600 mil assinaturas para o seu manifesto geek (esse pessoal que se declara "nerd que transa". Só que sozinho não conta, "galere"), através do portal Brasil 247, uma espécie de revista Veja para Tablets (se pá isso explique o conteúdo neoiberalista do manifesto e o foco em produtos eletrônicos).

O feito do Rapaz é ainda mais impressionante quado se considera que 4 min do vídeo se resumem a incessantes palavrões. E eles representam o que melhor se aproveita de todo o roteiro. O restante é pura e velha conversa liberalista barata do "ah, o governo te rouba quando cobra impostos" ou "ah, a classe média é que sai lesada dessa história toda".

Qualquer cientista político deve entrar em parafuso pra explicar essa ideologia de navegador, à qual se filiam hordas de monitores brasileiros. É uma espécie de programa de calouros , um "ídolos do palanque", a concretização da proposta que o horário eleitoral gratuito para deputados e vereadores há tantos anos propusera com seus candidatos fanfarrões.

O pessoal só não entendeu a drástica incompatibilidade entre as propostas. Que, se você quiser uma educação de qualidade, cortar o ICMS pra baixar o preço do Ipad não vai ajudar. O imposto, nem 10% dele, na verdade, é o que banca as universidades do estado de São Paulo.

Nossa carga tributaria é relativamente alta. Relativamente, pois, apesar dos nossos impostos representarem 34,4% do PIB (a média da OCDE tá por aí, mas há quem diga queémaior, que esteja pelos 40%) e o os dos EUA, por exemplo, representarem 28,8 %, o Brasil arrecada de cada bolso cerca de R$4 milão, diferente dos gringos, que sacam do cidadão R$13 mil.

Ô seje: a arrecadação per capita dos caras é 3x a nossa. Nem resaltemos que a população lá é um pouco maior que a nossa, já que os serviços do Estado devem atender à todos os cidadãos. Mas vale lembrar que lá serviços como saúde e educação superior de qualidade não são oferecidos pelo governo.

Seria pedir demais, mas pra ser levado a sério, o povo do twitter deveria escolher entre bancar a sua faculdade ou seu tablet. Ou, em outros termos, sua possível profissão, ou sua fonte de entretenimento e, possivelmente, de informação.

Claro que, a julgar pelos frequentes Trending Topics, a escolha desse pessoal seria óbvia, o post é só pra lamentar que o Felipe Neto tenha muito mais chances de se eleger que a Amanda Gurgel.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A invenção do PSD

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que tem esquadrinhado cada canto de sua consciência em caça ao orgulho de seu partido, não por acaso ocupa hoje o cargo de presidente de honra do PSDB. Honra essa ferida pela recente migração diaspórica de tucanos a bater asas rumo ao colo receptivo do mais recente sinal da precariedade política nacional, o PSD. Sim, afinal esse novo PSD é um partido inventado, que nasce sem direção definida, com princípios falaciosos e fruto de uma sórdida investida eleitoreira, pois os recentes 43% de rejeição do prefeito Gilberto Kassab, fundador da sigla, alertam que é prudente não se opor aos 73% de aprovação da presidenta Dilma Rouseff. E isso ocorre dessa maneira por que Kassab e seus novos amigos almejam cargos eletivos num futuro próximo, e nada mais oportuno do que desvencilhar seus nomes de uma direita em um caricato e anunciado processo terminal, apesar do que tentam demonstrar as recentes sandices de FHC.

Há uma motivação perversa por trás da criação do PSD, e isso incomoda resistentes da oposição direitista que dedicam lágrimas, suor e honorários a barrar um claro sinal de sua decadência, estampada em cada baixa que esses opositores enfrentaram, enfrentam e ainda hão de enfrentar. Discute-se já a possibilidade de fusão entre PSDB, DEM e PPS, numa tentativa de salvar sabe-se lá que ideologia política e em nome de sabe-se lá que futuro. Enquanto isso, Kassab arrebanha opositores menos arrependidos que oportunistas, afinal a política ainda se faz mais na imagem do que na ética, e tal infeliz situação é o álibi ao qual a nova turma do PSD se agarra com intenções exclusivamente eleitorais.

A caixa de Pandora, que é inacessível a uma colossal parcela da sociedade brasileira, contém em seu interior, e a alegoria mítica é proposital, a linhagem do PSD. Poucos conhecem, ou se conhecem ignoram, a ascendência política do novo grupo encabeçado por Kassab. A raiz do PSD foi aquela que “inventou a tristeza” e não teve a “fineza de desinventar” numa das passagens mais atrozes da história brasileira e já “desbotada na memória das nossas novas gerações”, para abusar da frutífera referência. No recente enfraquecimento da direita, os remanescentes da ARENA têm pagado, mas não dobrado, as lágrimas roladas no penar de outrora de muitos brasileiros. No correr da história, as crias da ARENA, sustentáculo do governo militar, ainda levantariam as bandeiras do PDS e do PFL antes de se chamarem, ironicamente, de DEMocratas há quatro anos. Além dessa descendência, que já é assombrosa, Kassab é afilhado político de Maluf, foi secretário de planejamento de Celso Pitta e carrega o mesmo modus operandi dessas duas doces almas que imperaram a paulicéia, todos os três com gestões pouco democráticas e extensos acervos de controvérsias.

As campanhas iniciais do prefeito Gilberto Kassab tentando alinhar a ideologia de seu novo partido à ideologia desenvolvimentista do antigo PSD do presidente JK são delirantes e de má-fé, pois carregam um desrespeito pelo povo, pela história recente do Brasil e pelo próprio JK. O DEM-PFL-PDS-ARENA, do qual Kassab é politicamente afilhado, colocou o PSD de JK na ilegalidade durante o regime militar com o AI-2 em 1965. Essa pretensa consanguinidade é mais um sinal da desesperada peleja do prefeito de São Paulo contra seu sujo passado político, e se mostra ainda mais infundada, pois qualquer testemunha mais atenta constata que o desenvolvimentismo passa a milhas da capital paulista.

O espólio burocrático e o fator governabilidade fizeram com que muitos setores da base do governo aceitassem com bons olhos a criação do PSD. Isso porque dentro das manobras político partidárias do congresso é positivo ter mais aliados ou neutros do que carregar o mesmo número de adversários. Além disso, as líricas trocas de olhares entre partidos da base governista e o PSD de Kassab são resultado da insatisfação desses setores da base com a nomeação de cargos do primeiro e segundo escalão no governo federal. Dado o poder de governo do novo bonde do Kassab, com prefeitos e governadores já em atividade, e os olhares voltados a 2012, é lucrativa a adesão ao PSD tanto para governistas quanto para oposicionistas.

Mas onde ficam as afinidades ideológicas nessa torre de babel, existem? E a ética governamental e o compromisso com a população, alicerce da política de fato, onde aparece nessa panela partidária? São Paulo, por exemplo, ainda pede socorro para 2010, não para 2012. A cidade precisa de creches, hospitais e corredores de ônibus, não um partido novo para o mesmo prefeito.

Assim, um novo cenário político nacional se arquiteta: No topo um governo que conduz o Brasil enfrentando defeitos políticos estruturais e uma herança histórica de descuido em diversos setores, como educação, saúde e tributação, pra citar alguns exemplos; uma oposição asfixiada, à direita, que tenta recuperar os cacos de sua vaidade abalada pelo fenômeno Lula e pelo escoamento de sócios através do único corredor que Kassab efetivamente criou; uma eleita oposição crítica e responsável, à esquerda, com a ética política necessária a transformar o Brasil, mas sem a atenção que merece por parte da velha e viciada grande mídia; uns errantes e manejados no meio disso tudo, afinal ser parlamentar é um emprego assaz lucrativo; e por fim os escapados, os lisos, os candidatos de 2012 do PSD, que não conseguiram se sustentar ideologicamente nesse novo cenário e inventaram um partido para sobreviver.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Educação do cabresto e a pedagogia do cacete

Etólogos, filósofos e outros pensadores costumam afirmar que uma das mais significativas diferenças entre o homem e os demais animais é a de que aquele tem a competência de planejar em longo prazo as suas ações, favorecendo sua sobrevivência em ambientes e climas diversos, enquanto aos animais é relegada a mera capacidade de reação frente ao que lhes ocorre. Animais são instintivos e reativos, sem reflexão, cadeias de pensamentos nem nada que o valha, enquanto os homens marcham triunfantes para além do sistema límbico, em conexões neuronais complexas e avançadas capacidades cognitivas, linguísticas e filosóficas.

No entanto, foi necessária uma chacina infanticida para que o ambiente hostil nas escolas fosse discutido com mais atenção nos grandes veículos de comunicação. E, contrariando ainda mais os etólogos, filósofos e outros pensadores, muitos especialistas ouvidos por esses grandes veículos são tão reativos quanto os demais animais, propondo alternativas imediatistas para um problema que ultrapassa as medidas disciplinares e de segurança que discutem. Detector de metais nas portarias? Seguranças armados? Alunos trancados nas escolas? Qual é o próximo lampejo de criatividade desses especialistas: coletes a prova de balas no uniforme escolar? Policiais com fuzis rondando os corredores? A lógica reativa desses especialistas transforma ainda mais a escola num ambiente hostil, sepultando toda e qualquer tentativa construtiva de fazer a educação ter sentido, e sentido amplo.

Aliás, qual o sentido da educação? Ensinar de forma “bancária”, como alertou Paulo Freire e como ainda se pratica muitas vezes? Adestrando almas de assalariados, acabrestados e acríticos a um destino pronto, em que nada do que se aprende na escola faz sentido? Há uma lógica desumana nas soluções imediatistas de determinados especialistas e uma proximidade dessas saídas com a forma de educação excessivamente disciplinar, quase penal, que normatiza um ensinar como “transferência de conhecimento”. E vou além: qual o sentido de ser especialista? Ter pleno domínio de um assunto específico? Acredito que alguns de nossos especialistas são vítimas do modelo mesmo que propõem: um modelo estreito, disciplinar, reto, algo militar. Também eles carregam um cabresto em suas especialidades, afinal a educação já não se mostra só comprometida nas escolas, mas conhece uma falta de sentido também nas formações superiores, como se tem notado.

Muitos especialistas ouvidos pela grande mídia após o massacre de Realengo não procuraram compreender o sentido da hostilidade escolar, que não é recente, numa cadeia de pensamentos que se espera dos seres cognitivamente superiores. Eles reagiram de pronto, com propostas pontuais que constituem uma tecnologia disciplinar, uma lógica proibitiva, penal. Há muita coisa sendo dita nos episódios de violência nas escolas, mas pouco é escutado por esses especialistas e pelas autoridades responsáveis, pois suas lógicas educacionais são incompatíveis com uma educação de fato, que tenha sentido para quem participa diretamente desse processo. Uma educação compreensiva, não punitiva. Uma pedagogia emancipadora, não restritiva. Uma escola que respeite os alunos em sua diversidade e no caminho ainda a trilhar, que faça a educação ter sentido. Tudo isso permanece distante da realidade da grande maioria das instituições de ensino pelo país e mais distante ainda dos discursos de certos especialistas que endossam uma pedagogia do cacete e uma educação forçada, sem sentido, inútil.

É urgente compreender o crescente de hostilidade e violência nas escolas, em cadeias complexas de pensamentos que nos permitam encontrar os núcleos desses males e ir além de medidas pontuais e reativas. Há muito material e pessoas preparadas para isso. Felizmente há especialistas com uma visão mais crítica da educação, mas esses ainda não estão no lugar certo. De um modo geral ainda sofremos com administradores públicos que governam como se gerissem corporações. Prefeitos e governadores que tratam o orçamento para a educação como custo, não como investimento.

A recente decisão do STF sobre a constitucionalidade do piso salarial de professores é um passo, mas ainda há léguas a caminhar num percurso que passa pela manutenção da pedagogicidade do espaço educacional, pelo enfrentamento de um legado político de descaso, pela promoção de uma cultura da educação que ainda é escassa no Brasil e por uma série de outros fatores que nutram de sentido a educação.

E que a forma abrangente e crítica de compreensão, necessária a uma intervenção mais fecunda na educação brasileira, reflita na prática do ensinar, negligenciada também por um ineficiente sistema disciplinar, normativo e comercial de tempos passados. Afinal, ou mudamos o modo como pensamos a educação ou mudamos o tamanho da distancia que nos separa dos demais animais.

Yuri Ongaro (10/05/11)