terça-feira, 10 de maio de 2011

Educação do cabresto e a pedagogia do cacete

Etólogos, filósofos e outros pensadores costumam afirmar que uma das mais significativas diferenças entre o homem e os demais animais é a de que aquele tem a competência de planejar em longo prazo as suas ações, favorecendo sua sobrevivência em ambientes e climas diversos, enquanto aos animais é relegada a mera capacidade de reação frente ao que lhes ocorre. Animais são instintivos e reativos, sem reflexão, cadeias de pensamentos nem nada que o valha, enquanto os homens marcham triunfantes para além do sistema límbico, em conexões neuronais complexas e avançadas capacidades cognitivas, linguísticas e filosóficas.

No entanto, foi necessária uma chacina infanticida para que o ambiente hostil nas escolas fosse discutido com mais atenção nos grandes veículos de comunicação. E, contrariando ainda mais os etólogos, filósofos e outros pensadores, muitos especialistas ouvidos por esses grandes veículos são tão reativos quanto os demais animais, propondo alternativas imediatistas para um problema que ultrapassa as medidas disciplinares e de segurança que discutem. Detector de metais nas portarias? Seguranças armados? Alunos trancados nas escolas? Qual é o próximo lampejo de criatividade desses especialistas: coletes a prova de balas no uniforme escolar? Policiais com fuzis rondando os corredores? A lógica reativa desses especialistas transforma ainda mais a escola num ambiente hostil, sepultando toda e qualquer tentativa construtiva de fazer a educação ter sentido, e sentido amplo.

Aliás, qual o sentido da educação? Ensinar de forma “bancária”, como alertou Paulo Freire e como ainda se pratica muitas vezes? Adestrando almas de assalariados, acabrestados e acríticos a um destino pronto, em que nada do que se aprende na escola faz sentido? Há uma lógica desumana nas soluções imediatistas de determinados especialistas e uma proximidade dessas saídas com a forma de educação excessivamente disciplinar, quase penal, que normatiza um ensinar como “transferência de conhecimento”. E vou além: qual o sentido de ser especialista? Ter pleno domínio de um assunto específico? Acredito que alguns de nossos especialistas são vítimas do modelo mesmo que propõem: um modelo estreito, disciplinar, reto, algo militar. Também eles carregam um cabresto em suas especialidades, afinal a educação já não se mostra só comprometida nas escolas, mas conhece uma falta de sentido também nas formações superiores, como se tem notado.

Muitos especialistas ouvidos pela grande mídia após o massacre de Realengo não procuraram compreender o sentido da hostilidade escolar, que não é recente, numa cadeia de pensamentos que se espera dos seres cognitivamente superiores. Eles reagiram de pronto, com propostas pontuais que constituem uma tecnologia disciplinar, uma lógica proibitiva, penal. Há muita coisa sendo dita nos episódios de violência nas escolas, mas pouco é escutado por esses especialistas e pelas autoridades responsáveis, pois suas lógicas educacionais são incompatíveis com uma educação de fato, que tenha sentido para quem participa diretamente desse processo. Uma educação compreensiva, não punitiva. Uma pedagogia emancipadora, não restritiva. Uma escola que respeite os alunos em sua diversidade e no caminho ainda a trilhar, que faça a educação ter sentido. Tudo isso permanece distante da realidade da grande maioria das instituições de ensino pelo país e mais distante ainda dos discursos de certos especialistas que endossam uma pedagogia do cacete e uma educação forçada, sem sentido, inútil.

É urgente compreender o crescente de hostilidade e violência nas escolas, em cadeias complexas de pensamentos que nos permitam encontrar os núcleos desses males e ir além de medidas pontuais e reativas. Há muito material e pessoas preparadas para isso. Felizmente há especialistas com uma visão mais crítica da educação, mas esses ainda não estão no lugar certo. De um modo geral ainda sofremos com administradores públicos que governam como se gerissem corporações. Prefeitos e governadores que tratam o orçamento para a educação como custo, não como investimento.

A recente decisão do STF sobre a constitucionalidade do piso salarial de professores é um passo, mas ainda há léguas a caminhar num percurso que passa pela manutenção da pedagogicidade do espaço educacional, pelo enfrentamento de um legado político de descaso, pela promoção de uma cultura da educação que ainda é escassa no Brasil e por uma série de outros fatores que nutram de sentido a educação.

E que a forma abrangente e crítica de compreensão, necessária a uma intervenção mais fecunda na educação brasileira, reflita na prática do ensinar, negligenciada também por um ineficiente sistema disciplinar, normativo e comercial de tempos passados. Afinal, ou mudamos o modo como pensamos a educação ou mudamos o tamanho da distancia que nos separa dos demais animais.

Yuri Ongaro (10/05/11)

Um comentário:

resende.m disse...

Pois é... Uma das vantagens evolutivas que temos é conseguir associar melhor a ação e a reação que ocorre a longo prazo.
Entretanto nem sempre colocamos isto na prática e buscamos respostas imediatistas.
Sempre acho um argumento válido quando alguém critica a grande padronização que a educação nos moldes atuais exerce. Acho que isto é uma decorrência da 'meritocracia' que o capitalismo nos impõe! Só ganha salário alto quem 'merece' porque estudou muito? Não me parece certo.
Uma menor disparidade entre os salários de quem faz serviço braçal e intelectual ajudaria significativamente na melhoria do sistema de ensino.
Permitir que as pessoas buscassem outros caminhos seria vantajoso para todos na busca pela felicidade e realização pessoal plena.