terça-feira, 10 de julho de 2012

Bolsa sim, “emprego” não!


   
Foto: Felipe Gesteira
Desde a instituição de programas sociais como o Bolsa Família pelo governo federal, a imaculada ala dos corretos chia com a concessão dos benefícios: “bolsa-esmola!” bradam os infecundos críticos de qualquer coisa; “Só querem bolsa, trabalho nada!” impugnam os incorruptos advogados da moral classemedista.

No entanto, mesmo estufando o peito com ares de exegetas político-sociais, de nada sabem esses presunçosos desinformados das coisas palpáveis, do alto de seus apartamentos, carros, celulares e Facebooks.

Criados em ambientes confortáveis, tendo televisor toda vida, computadores, educação e lazer à altura das mimadas mãos, jamais sequer imaginaram os perrengues por que passam romarias de despojados que nascem, vivem e morrem pobres, há séculos, sobre o chão brasileiro.

Não é a intenção moralizar. Mas não são válidos, muito menos éticos, comentários cotidianos boiando na superficialidade do conhecer humano. A tendência dos que são contrários aos programas de transferência de renda é a de repetir um discurso desbaratado, carregado de moralismo e sem pé na realidade. Isso porque julgam o caboclo pobre dos rincões nacionais à luz de seus quartos aconchegantes e bem decorados.

Exemplo semelhante veio das doutas mãos de Luiz Felipe Pondé, ao criticar os que analisam a realidade dos indivíduos tendo o social como pano de fundo. Sem entrar em pormenores, o venerado filósofo do horário nobre considera sensato supor a realidade de indivíduos socialmente oprimidos do alto de seu confortável habitat nos Jardins, Higienópolis ou arredor análogo.

É fácil, e cômodo, descortinar o chavão de que fulano vai se acomodar com o dinheiro, não vai querer trabalhar e, por grosso silogismo, vai viver à custa do Estado. Esse raciocínio é inocente, ou farto de uma deletéria lógica “arbeit macht frei”.

Inocente, pois boia na onda e repete, papagueia simplesmente. Ecoam por essas vazias mentes também urros de “político é ladrão”, “Fora Sarney!” e, mais recentemente, um obsessivo “#vetaDilma”. Como são, por que são e quais as intenções de ser desses programas de transferência de renda são enigmas abstrusos e insolúveis para quem está mais empenhado com seus próprios apetites.

Quanto à honra do “trabalho liberta”, não há aforismo mais anacrônico. E, como os da inocência, os que agitam essa bandeira não enraízam suas convicções. São aqueles que cobram corte de bolsas porque o “pobre acostuma”, e apontam o dedo condenando o cidadão ao batente. “Vai trabalhar, vagabundo!”. Mas são também esses indefectíveis críticos que resmungam de segunda-feira, do trânsito e do fatal e maldito final do fim-de-semana.

Não há argumentos que sustentem, sob o ponto de vista da saúde do ser humano, o emprego como algo que liberte, engrandeça ou garanta uma vida saudável para um e para todos.

Os que defendem trabalho assalariado para os beneficiados por programas sociais, além de carregarem uma moral do lucro, para regozijo daqueles que verdadeiramente lucram, ainda passam longe da compreensão do ser humano como autor de sua própria vida.

Essa repreensão sequer reflete sobre o sentido do trabalho. E, mesmo reclamando do patrão e das outras cruzes de suas próprias atividades remuneradas, essas críticas almas repetem incessantemente o adágio da moral “vai trabalhar!”.

São falsas muitas das condenações ao Bolsa Família. Não é o programa ideal. Mas num país (leia-se cidadãos, governos e setor privado) que cultivou, e ainda cultiva a desigualdade econômica, política, social e cultural, essas medidas são urgentes.

Urgentes para que muitos brasileiros tenham o que comer, como se vestir, como comprar remédios, tenham condições de estudar. São medidas urgentes para se criar condições nas quais os beneficiados possam crescer. Mas só crescerão de fato quando a moral do emprego assalariado der lugar ao movimento pela cidadania, pelo trabalho coletivo, cooperativo, social e com sentido para o cidadão, para o povo e para o Brasil.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Vida de assalariete

As empregadas domésticas do fantástico mundo
da Globo são popstars. Mas na prática a teoria é outra.
Por fonte não muito confiável, a própria emissora, tomei conhecimento do aloucado, delirante e cavalar enfeite deitado sobre o trabalho de empregada doméstica numa das novelas globais. As “empreguetes” acordam cedo, moram longe do emprego, pegam condução cheia, enfrentam o desdém da patroa, a exploração das filhas da patroa, só conseguem pensar no sofá de casa e, mesmo assim, viram superstars.

A boa e velha ode ao trabalho servil, sofrido, mal pago, sem sentido e sem futuro. Não é de hoje que a Rede Globo exalta e decora fantasiosamente o sofrimento diário e de toda vida do assalariado, ou assalariete.

Em novela recente, uma dona de casa enfrenta preconceito do filho, dificuldades financeiras, trabalho exaustivo e toda espécie de fado de qualquer outro trabalhador. E, como também calha diariamente a qualquer outro trabalhador, ganha na loteria.

É chique ser assalariete, dá até na novela. Você que tem empregada doméstica na sua residência seguramente já parou para refletir sobre o trabalho da moça que lava seu vestuário íntimo. Se não, tente, pelo bem da sua consciência. As profissionais reais vivem uma rotina sem brilho.

Arte que institui e adorna o abismo social que predomina no país deve ser contestada. As atrizes Taís Araújo, Isabelle Drummond e Leandra Leal podem ser chamadas de “Cheias de Charme” sem muito receio da névoa da imprecisão.

Mas a questão é se vale a pena interpretar empregadas que viram estrelas, ou se mesmo podem representar as empregadas domésticas espalhadas pelo Brasil.

Não que estejam moralmente impedidas de interpretar. É da natureza de profissionais cênicos encararem os mais contrastantes papéis. As mais diversas realidades. Além de todas as três carregarem experiência e reconhecimento, são grandes profissionais.

Mas transmitir, com luxos excêntricos, o júbilo de enfrentar desdém, exploração, transporte ruim e rotina desgastante, foge ao bom senso e mesmo à realidade que desejam representar.

As gatas borralheiras contemporâneas pintam conquistas na irrealidade, no imaginário. Ao mesmo tempo, a realidade palpável da emissora que faz o circo é a de atalhar sucessos das pessoas representadas em suas novelas. Fazer sonhar é mais rentável que realizar sonhos. É o sistema.

É tradição do “padrão Globo de qualidade” pintar, com as melhores cores, as tragédias nacionais. Foi assim durante o Regime Militar com manipulação de notícias e imagens; é assim com o jornalismo partidário e encobridor da corrupção envolvendo parceiros da emissora; e naturalmente, pelo mesmo caminho, segue o entretenimento de antolhos que conforma o assalariete à sua devida condição, tão promissora na ficção.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Pecado: capital


O ladrão quer, o professor quer, o policial quer assim como o traficante também quer. Você quer, o político corrupto quer, sua mãe quer e até o irregular pedinte de metrô ainda quer. O médico quer, o empresário sempre quer, o funcionário quer e até o índio passou a querer.

Vendaval ou solução, o certo é que já passamos do antropocentrismo e orbitamos outro núcleo, mais rentável. Nenhuma evolução é linear, e só é progressista se a fazemos assim. Deus, o homem e o dinheiro. Podemos assegurar com retas sentenças que o mundo gira hoje em torno do último, seja através do primeiro ou do segundo.

Do miserável ao milionário, estamos todos condenados à lógica das cifras. Invariavelmente, temos o nosso valor, o nosso valorar. Somos compradores e comprados, consumistas e meras moedas de troca.

Não é espantoso o fato de que todos os nossos dias perseguimos um objetivo que se vai por aí? Somos incitados pelo imperativo do dinheiro. E, ao mesmo tempo em que somos usurpados, perseguidos, subjugados e oprimidos por ele, a ele sempre tornamos de braços abertos.

Mais do que qualquer outra razão, o dinheiro nos faz perder horas de nossas vidas a executar um trabalho sem sentido, ao qual fomos empurrados e sem o qual sofremos as mais doídas dores que o humano pode vender.

O dinheiro nos joga uns contra os outros. Compra alegrias, tristezas, fantasias, compra liberdade. Usamos um mundo sombrio em que educação é consumida e saúde é comprada.

Os crimes - do furto ao parricídio, do sequestro às guerras civis – boa parte deles têm o dinheiro como motivo, ou a falta dele, mais precisamente, como ensejo. E mesmo sendo o gatilho da violência, da segregação e de tantas outras tribulações de uma espécie tão desenvolvida, ainda reina triunfante sobre nossas existências.

Alternativas sempre há. Aquelas que priorizam o essencial, o humano, em vez do intermediário capital. Mas é duro reverter a situação. Sobretudo em lugares em que as raízes do privado estão tão encravadas nas costas do trabalho e os braços do dinheiro agarram a humanidade por todos os lados.

A discussão é eterna. E em momentos de crise ela deve ser travada com mais seriedade. O sistema erigido sobre a propriedade, o lucro e o salário com a compra da atividade não é solidário, não é coletivo, não é humano.

No entanto da discussão deve se passar à práxis. Em ano de eleições esses pontos mais fundamentais devem abalizar propostas de realização concreta. São Paulo já mostrou para todo o mundo que não tem vocação para o coletivo, sobretudo centrifugamente, dado o claro conservadorismo nos bairros centrais que sustentam a atual administração.

E de nada valem esforços para minimizar efeitos devastadores do capitalocentrismo, por mais cobertos de adornos de boa vontade que estejam esses esforços, como campanhas disso e aquilo. São paliativos, e na maioria das vezes escondem perversos desígnios.

Se não se aponta o fundamento dos principais males humanos, qualquer cuidado é anódino. Aliena, conforta e conforma conforme a cobiça de quem faz a cabeça das pessoas.

Dia-a-dia vendemos nossos sonhos, nosso ser, nossa liberdade, em troca da subsistência que o dinheiro autoriza. Desistimos de nossos desejos para realizar desejos estranhos aos nossos, em troca de migalhas de uma sustentação, toda a vida.

É bom a humanidade dar outros passos, coletivos e, imprescindivelmente, impreterivelmente humanos. Caso contrário, não carregaremos mais o dinheiro, mas continuaremos por ele carregados.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O PT de Erundina não existe mais.


Existe um debate político sério que resume o velho dilema de quem não está no poder: Continuar fiel à sua ideologia, tentando conquistar a opinião pública através da argumentação, ainda que esse processo seja demorado e muito possivelmente infrutífero, ou aceitar uma flexibilização para adaptar-se a novos eleitores de forma mais rápida, mesmo perdendo sua identidade.

Esse é o cálculo político que, em tese, massacra a cabeça de marqueteiros e candidatos a cada 4 anos (ou a cada dois, dependendo de quem estamos falando). Em tese, que na prática, a teoria é outra, como nos mostrou o PT recentemente.

A ideologia partidária foi assassinada há muito tempo pelo fisiologismo, que os pesares que temos vistos são até antiquados. Taí a lei que impõe a fidelidade partidária aos políticos pra provar que, só por ter sido necessária, já mostra o valor da identificação entre partidos e candidatos.

As bandeiras dos principais partidos hoje não são mais que grifes políticas: brilha mais aos holofotes quem estiver no PT ou no PSDB, apita entre estes quem está no PMDB ou DEM, e o resto se espreme entre no máximo mais 10 partidos. Não há nem mesmo ideologias políticas suficientes para dar conta de tanto partido que o nosso sistema abriga. O Fundo partidário, no entanto, justifica a existência de todos.

Vai daí que temos a esdrúxula aliança do PT paulistano com Maluf, que comprometeu inclusive, sua feliz aliança com um dos símbolos de integridade do partido, Luíza Erundina, hoje no PSB. Ambos representam a morada da ideologia dos nossos tempos: a ideologia do indivíduo em quem se vota - a despeito de seu partido.

"A gente vai conseguir um bom tempo de TV, e ..."

O cálculo político não é complexo. O eleitorado paulistano é udenista: opositor do que considera populista, conservador, crê no mito da segurança pública via repressão, tem aversão à corrupção (sobretudo a que supostamente enriqueça os candidatos opositores) e desenvolvimentista. Maluf é a síntese prefeita dessa ideologia, tem uma frase de efeito pra cada pré-requisito. E mesmo chafurdado em denúncias, e mesmo depois do Pitta, ainda influencia em boa parte do voto "bandeirante".

Se saísse candidato hoje, uns bons 8% ficariam com o Maluf. Nada, nada, dá uma briga por um terceiro ou quarto lugar. Isso não faz jus ao currículo do Dr. Paulo, muito menos à necessária renuncia ao cargo de deputado federal para entrar em campanha. Por outro lado, a chance de voltar a fazer parte do executivo, dos holofotes, e a doce voz de Lula devem ter feito Maluf repensar seu ostracismo.

Talvez Haddad não consiga abranger os votos de todos os simpatizantes do Maluf. Mas este é um eleitorado que jamais votaria no PT. Para além dos minutos de TV, Haddad tira votos do Russomano (hoje no PRB, seu 5º partido), que são votos ainda em disputa. Vale ressaltar, a amizade entre Maluf e Russomano é a igual a de Alckmin e Serra. Realpolitik no seu estado mais transparente, pois.

Já Luíza Erundina (PSB) é uma espécie em extinção. A ex-prefeita de São Paulo praticou o tal Realpolitk ao entrar no governo de Itamar, oposição clássica de seu partido, mas convenhamos, os tempos eram tão outros que foi substituída por um militar. Foi um movimento de autonomia, em oposição ao seu partido, talvez precipitado, inclusive, por tão pouco que durou. Hoje, ao abrir mão de montar a chapa com Haddad, ela novamente personaliza sua ideologia própria, e paga o preço por sua coerência.

"o que você achou da proposta, Deputada?" 

Apesar de decepcionado, o eleitorado petista deve manter seu voto. O que não está sendo mantida é a identidade do PT. O partido escolheu usar as armas do inimigo para vencer a batalha, às custas de sua história e identidade. O que não é muito diferente de assumir extinção do projeto original, ou o que restava dele, e ainda interessava Erundina.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Cidade virada


Em São Paulo as coisas adequadas acontecem em doses. Goles de cidadania num mar de barbárie. Chega a ser piada de mau gosto celebrar as episódicas viradas que tomam todo um dia de fim de semana, cada uma. Otávio Augusto, imperador romano, ao menos dava o panis com o circenses. Em São Paulo fica só o circo, porque a galinhada é pra poucos.

Crianças fumam crack no bairro da Luz, um dos palcos
de eventos como a Virada Cultural.
A Virada Cultural seria uma política perfeita, fosse a cidade amistosa com artistas e o entretenimento mais acessível ao público. Em outras partes do mundo, funcionaria como estímulo à arte e cultura. Mas onde a divulgação de material de artistas de rua já foi proibida pela alta cúpula municipal, a cultura fecha as portas para muitos.

Contando ainda com a dificuldade de acesso a teatros, museus et similia. Com políticas que evidenciam cada vez mais um potencial de apartheid na Pauliceia, as opções suburbanas de cultura se reduzem, na maioria das vezes, aos cinemas das grandes redes, e olhe lá. A cultura é concentrada no centro, onde poucos têm realmente acesso. O transporte público trafega em horários limitantes, além de taxis, estacionamentos e ingressos que restringem a difusão da cultura por outras partes da cidade.

O negócio pra maioria é esperar a próxima dose da virada cultural, com ou sem a afamada galinhada. Ou atentemos a candidatos que têm propostas reais para educação e cultura para toda a cidade neste ano.

Os esportes também ganham seus quinhões de atenção. A Virada Esportiva tem o propósito de realizar atividades pela cidade. Temos arenas no Anhangabaú, onde normalmente encontramos poças de urina, trabalhadores apressados e andarilhos numa cidade sem alma. Além de outros pontos em que o esporte é estimulado, anualmente.

Mas nas escolas públicas pouco se produz de incentivo ao esporte. O sistema CEU implantado em outra gestão tem o intuito de levar à periferia um constante trabalho de estímulo a atividades esportivas, artísticas e culturais, paralelas à educação formal. No entanto é pouco. Com poucos parques e áreas verdes e ludibriados sonhos de ciclovias, as opções são limitadas, sobretudo, a clubes privados.

Continuemos tendo como sinônimo de esporte a torcida pelo time, no sofá. Ou olhemos e escolhemos com atenção iniciativas que já deram sucesso e podem trazer novo fôlego esportivo à cidade, sem segregação, a partir deste ano.

Por fim, vem aí a Virada Sustentável, de iniciativa privada, com exposições, oficinas e demais atividades voltadas ao meio ambiente, direitos humanos, biodiversidade e mudanças climáticas.

Ao menos uma vez por ano, se a moda pegar. Pois pra uma cidade que assiste à gentrificação e caça a dependentes químicos, a preferência da prefeitura pelo transporte privado ao público, a ausência quase completa de coleta seletiva, que também sofre com o reduzido número de áreas verdes, com o deslocamento da criminalidade para a periferia, níveis de poluição e trânsito alarmantes, dentre outros retrocessos sociais, não cabe, para essa cidade, o selo sustentável.

Assim, por aqui as boas iniciativas são episódicas e carregadas de propaganda: circo. A política pública paulistana é virada, só de viradas. No resto do ano a cultura é cara, o esporte se reduz à academias e a sustentabilidade passa longe da selva urbana. Já passou da hora de cultivar outra virada, também sustentável, a partir deste ano.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Chamar corintiano de ladrão não é racismo ou preconceito de classe?


Não sou corintiano e nem adepto do discurso politicamente correto a qualquer custo. Discurso esse que tem se tornado um patrulha e provocado ações judiciais desnecessárias como a investigação do vídeo-clipe de Alexandre Pires e muitos outros pedidos de retratação contra humoristas mundo afora.

Em todo caso, um tipo de piada com corintianos passa incólume a essa patrulha e não entendo porquê. Talvez seja porque, como alguns definem, o politicamente correto não deixa de ser uma arma de quem tem alguma força política para manifestar sua opinião.

Fato é que é corriqueira a associação jocosa corintiano/ladrão/analfabeto. Por que isso? Bom, o Corinthians tem uma das maiores torcidas do Brasil, é conhecido como time popular e não é segredo para ninguém que boa parte dessa torcida vem das camadas mais pobres (caso do Flamengo também, por exemplo). Tanto que os próprios corintianos assumiram a alcunha de "Maloqueiros".

Também é fato que negros e pardos são maioria nas camadas mais pobres da população brasileira. Ou seja, a associação vem na esteira da relação que estabelece que pobre e negro é também analfabeto ou ladrão. Ora se há analfabetos no país, isso é retrato da educação precária do Brasil. Já chamar todo um segmento da sociedade de ladrão é generalizar e denegrir a imagem de um grupo.

Fazer esse tipo de piada com corintianos me parece uma atitude racista, ou no mínimo, um preconceito de classe. Muitos outros tipos de piadas foram tachados - com razão - de machistas, racistas ou homofóbicas e aos poucos passaram ao lodo do politicamente incorreto. Será que nesse caso, isso vai acontecer?

* em tempo: até segunda ordem, a piada com a falta de títulos na Libertadores segue valendo. E é engraçadíssima!


domingo, 20 de maio de 2012

Paulistices


Moro em São Paulo há mais de dois meses, uns 80 dias que já me valeram uma volta ao mundo, menos pelas aventuras do livro de Júlio Verne e mais pela quantidade de culturas e de povos que já vi pela cidade.

Fora o sotaque nordestino bem mais comum que o paulista, nas ruas vejo grupos de africanos conversando num idioma que eu não faço a menor ideia qual seja, japoneses, chineses e boliviano, sendo que os primeiros são os que mais me intrigam. O que faz uma pessoa arriscar a vida noutro lugar que usa outro alfabeto e que fala um idioma completamente diferente? É a crise. Claro, sem contar os turistas que vivem olhando para cima com suas máquinas fotográficas e para trás procurando os colegas de excursão mais lentos.

São Paulo mistura uma tecnologia que eu nem imaginava que fosse ver com um recorte do passado que eu pensava não existir mais. Há televisões em ônibus (na verdade passam slides, mas já um primeiro passo) exposições interativas e ainda existissem engraxates e lojas de máquinas de escrever. Sim, só de máquinas de escrever.

Eu não fazia ideia de quantos mendigos existiam em São Paulo. Vê-se até famílias inteiras nas ruas vestindo trapos e com um mau cheiro que se percebe há uns dois ou três metros de distância. Impossível não constatar: não se vê muitos cães no centro da cidade porque a concorrência com seres humanos por comido é desleal aos irracionais.

Por aqui se acha de tudo. Sem procurar, tropeça-se uma banda. Elas que são tão raras em Bauru. Há também uma efervescência política na Avenida Paulista, marchas, paradas, megafones na Praça da Sé.

O caminho pelas ruas do centro é uma sequência de abordagens, perguntas e afirmações. Vai comprar ouro? Eu leio sua mão, trago a mulher amada. O demônio está entre nós. Amigo, almoço por quilo é aqui. Tem um real? Onde é a Boa Vista?

Nas ruas ainda se vê emos e metaleiros, mas são mais comuns aqueles que misturam calça jeans, camisa branca com algum desenho ou frase, cabelos coloridos, jaqueta xadrez, óculos de armação grossa e de cor viva, ou com calça xadrez, camisa colorida, jaqueta jeans, ou dois desses quatro itens. Ou todos e mais alguma coisa. São de tantas tribos, muitas vezes de mais de uma. Ou às vezes de nenhuma. 

São Paulo bem vale uma foto. 

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mirem-se no exemplo


O país tem pouco mais de 403 mil habitantes em cerca de 103 mil km². Independente há cento e poucos anos, a república é jovem, 68 anos. Com 99% de alfabetização e mortalidade infantil não passando de 2,9 crianças por mil nascidas, esse pedaço de terra cercado de água está consideravelmente distante do continente europeu, física e democraticamente.

Com a ajuda do Mapa de Caracteres e do Google Translator,
acima está algo como: "Parem de oprimir o povo no país"
Enquanto a oligarquia assola a zona do euro, a Islândia se sobressai pelos atos de soberania do povo. Um pedaço de democracia cercado pela austeridade à “Merkozy” e pela recessão. O referendo grego do Ágora ou Nunca seria um bom exemplo às cúpulas financeiras que tentam controlar a crise as custas da população. Seria, não fosse a adaga do FMI a cutucar os anseios democráticos helênicos. O exemplo não saiu de Atenas, não obstante a música.

Com a eclosão da crise financeira de 2008, ouvimos boatos de nacionalização dos bancos na Europa e mesmo nos EUA, para agonia dos liberalistas. No entanto só aquela pequena ilha a noroeste do velho mundo promoveu o feito. Os três bancos privados islandeses, Glitnir, Kaupthing e Landsbanki foram nacionalizados em outubro de 2008. Mesmo assim a Islândia sofreu os duros golpes da recessão.

A coroa islandesa despencou, a Bolsa de Reykjavik sofreu queda de 76% e suspendeu suas atividades e a falência da ilha fora decretada. À época, 2008, foi o país que mais sofreu com a crise no mundo.

No início de 2009 inicia-se o protesto. O povo islandês começa a se concentrar em frente ao Parlamento (Althingi) e ordena a renúncia de todo o governo conservador, comandado por Geir Haarde.

Foram convocadas eleições antecipadas e, em abril do mesmo ano, os islandeses deram a vitória à coligação formada pelo Movimento Esquerda Verde e pela Aliança Social-Democrata, elegendo Jóhanna Siguðardóttir como sua primeira ministra. Para salientar o caráter exemplar da mudança de governo, Jóhanna é a primeira mulher a ocupar a liderança do parlamento islandês, além de ser homossexual assumida.

Um paraíso do neoliberalismo sob o comando de Haarde, a Islândia costumava abrir os braços ao capital financeiro estrangeiro, principalmente ao britânico e ao holandês. Com a quebra dos bancos islandeses, sobretudo o maior, Landsbanki, os governos da Grã-Bretanha e da Holanda abriram ação para a indenização de seus clientes, a conta tendo que ser paga pela Islândia.

A dívida ficou estimada em 3,5 bilhões de euros e recairia sobre o povo islandês, pois a venda dos bens do Landsbanki não cobriria a tal dívida em sua totalidade, e a responsabilidade pelos débitos do banco era do governo que o nacionalizou.  O Parlamento aprovou uma lei que cobrava de cada cidadão islandês o ressarcimento da dívida, assim, dividida.

Novamente os islandeses tomaram as ruas em 2010 e exigiram referendo para a tal lei. Em janeiro de 2010 o presidente, Ólafur Grímsson, se recusa a sancionar a lei e declara que será feita a consulta popular.

Ágora. Em março, 93% dos islandeses votam pelo não pagamento da dívida. Enquanto Grécia, Irlanda e Espanha são exemplos de países que sofrem com as exigências do FMI para pacotes de austeridade e recusa de referendos por parte dos governos, na pequena ilha ártica o povo é quem decide os rumos da nação.

Em seguida, os responsáveis pela crise dos bancos privados são investigados e responsabilizados juridicamente pela crise financeira que quebrou o país.  São iniciadas investigações e detenções com a pressão do povo sob a coligação do novo governo. Os crimes financeiros investigados e esclarecidos na Islândia permanecem um mistério no resto do mundo. Lá há mobilização.

A pressão popular foi longe, uma assembleia constituinte foi convocada, com a eleição de 25 cidadãos sem filiação partidária: representantes sindicais, estudantes, agricultores, jornalistas, dentre outros. A nova constituição é inspirada na carta magna dinamarquesa, tendo inclusive recebido sugestões da população via internet.

Há escassa cobertura internacional, justificada, uma vez que um povo tomando as rédeas de sua própria nação desagrada aos grandes veículos de comunicação e a seus protegidos.

No entanto, são boas as previsões de crescimento da Islândia em 2012. E o exemplo dado pelo povo islandês está sendo divulgado na Espanha, por exemplo, e necessita ganhar repercussão. Para além dos usos indevidos da democracia no resto do mundo, ali levaram ao pé da letra o sentido da palavra.

Mesmo que a crise tenha passado como marola pelo Brasil, ainda fica o exemplo de mobilização séria, responsável e direta. Meros protestos soltos em redes sociais, sem o devido direcionamento, não chegarão longe. Logo, mirem-se no exemplo.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O balanço do “palhaço”


Há cerca de um ano escrevi, neste mesmo blog, meu primeiro texto. Tratava-se de uma crítica à espada dos bons costumes que os moralistas políticos empunhavam contra Tiririca, o “deputado palhaço”. A pudica e ilibada pose dos que ecoam como injúria o fato de um palhaço ser deputado ainda é grande, grande como a ignorância que dedicam à política nacional.

Pois bem. Passado esse tempo, surgiram rumores de uma eventual candidatura de Francisco Everardo, o Tiririca, à prefeitura da maior cidade do hemisfério sul. Os castos gritos de desagravo novamente ressoam nessa treva de cidadania. Mesmo aqueles que, sabendo ou não o que faziam, dedicaram seu voto a Gilberto Kassab, acham censurável um palhaço no comando da cidade.

Para retificar essa carência de informação, julguei prudente trazer à tona um balanço da legislatura de Francisco Everardo, o Tiririca, para que os delatores imaculados encontrem um pouco de paz para suas lamúrias.

Assiduidade. No ano de 2011, Francisco Everardo se ausentou de apenas duas sessões ordinárias no Congresso, uma em 23/03 e outra em 27/09. No entanto esteve presente nos mesmos dias em sessões extraordinárias, fazendo com que sua frequência em plenário tenha sido de 100%.

No presente ano, Francisco Everardo se ausentou no dia 27/03, mas mais uma vez apenas na sessão ordinária, estando presente na sessão extraordinária do mesmo dia. Novamente 100% de assiduidade em 2012.

Tiririca é também titular da CEC, Comissão de Educação e Cultura da “casa”. Aqui sua assiduidade não foi exemplar, para delírio dos probos paladinos dos bons costumes. No ano de 2011, Tiririca se ausentou sem justificativa em 9 de 66 sessões, o que lhe dá uma frequência de 86,4%. Já em 2012, ainda titular, se ausentou apenas em 11/04, até então, tendo 83,3% de presença.

Em sua atividade parlamentar, Tiririca tem se focado em questões que concernem à sua comissão e, sobretudo, à sua experiência profissional. Tem defendido os interesses de artistas circenses e junto aos ministérios da Educação e da Cultura, tem atentado a programas culturais com fins educativos.

Ao contrário do que muitos íntegros patronos da probidade advogam, palhaços não são simplesmente estúpidos indivíduos que só servem para nos fazer rir. Vemos como é difícil fazer rir hoje em dia, muitas vezes sendo necessário mergulhar nas profundezas da humilhação racial e social. Mas esse é um rico diálogo que tem dado ares neste blog, lanço apenas uma breve consideração.

Tiririca procura se informar sobre ações de amparo à atividade circense arquitetados pela Funarte, tem defendido interesses de artistas circenses e a profissionalização da educação no circo.

Em matéria de direitos sociais, Tiririca é autor de um projeto que visa à criação de programas de amparo a famílias e pessoas que exercem atividades circenses e diversões itinerantes. É autor de um projeto de lei que autoriza à União a criação do programa Bolsa-Alfabetização, para alunos maiores de 18 anos matriculados na rede oficial de ensino.

Ainda em cultura, criou projeto de lei de incentivo à leitura com Vale-Livro para incrementar a Política Nacional do Livro e tornar a leitura acessível a camadas literariamente abandonadas pela excludente indústria editorial.

Os projetos de Francisco Everardo são voltados à cultura, como o “Cultura Viva” e os supracitados planos, além de defender os direitos de artistas circenses e itinerantes, inclusive a educação formal de adultos e crianças desse público.

Infelizmente, Tiririca ainda está longe de uma atuação parlamentar ideal. Mas para um país em que o eleitorado, sobretudo a classe média intelectualmente ativa, ainda reproduz o discurso moralista, presumivelmente ilibado, e alheio à realidade política nacional, o palhaço é a tradução perfeita da representatividade política.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

El Bloqueo


Em novembro de 1806, Napoleão Bonaparte deflagrara, via decreto, o bloqueio continental contra a frota mercante inglesa. Uma manobra de guerra, mais que política. Sem poder contestar o domínio da rainha sobre os mares, a alternativa protecionista, por assim dizer, do império francês, acabou por não durar muito.

A tentativa de minar a economia de uma ilha via bloqueio viria a se repetir, tal qual farsa, como preveria Marx. Também uma manobra de guerra, apesar das convenções internacionais acharem natural um país influenciar diretamente a economia de outro com ameaças a terceiros.

E o bloqueio, ou embargo, é considerado um ato de guerra desde a London Naval Conference de 1909.

OMCs e ONUs a parte, a difícil situação econômica de Cuba tem sua origem 50 anos atrás. Quem mandou derrubar uma ditadura e querer organizar um sistema econômico igualitário com supressão de opressão e criação de sistemas de educação e saúde universais?

É praxe nas aberturas da Assembleia Geral da ONU a condenação, por esmagadora maioria, do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos desde Fevereiro de 1962.

Mas, de acordo com o que temos apreciado na guerra cambial entre os ricos e os emergentes, expondo a inutilidade da OMC, e conforme vimos nas invasões norte-americanas ao oriente médio apesar do indeferimento do também inútil conselho de segurança da ONU, as convenções internacionais são meramente figurativas, pois sanções só são levadas a cabo contra os inimigos do ocidente, nesse já batido maniqueísmo global.

A imposição dos EUA de que Cuba não tem direito de escolher seu próprio regime social e econômico trouxe severos danos ao povo cubano. A proibição de países e companhias estrangeiras e ianques de negociarem com a ilha, sob pena de retaliação, isolou Cuba e os cubanos por todo esse tempo.

O bloqueio dificulta a troca comercial de excedentes e mesmo a importação de vacinas infantis, remédios e novos métodos de diagnóstico por parte do governo cubano. 85% das patentes dos produtos farmacêuticos no planeta são de empresas estadosunidenses, e Cuba não tem acesso a esses medicamentos por conta do bloqueio.

Violação de preceitos do direito internacional humanitário que proíbe a restrição à circulação de medicamentos e alimentos, mesmo em estado de guerra.

Para a diplomacia do governo dos EUA, direitos humanos parecem ser relativos. Hão de defender esses direitos quando andarem em conformidade com os interesses nacionais dos EUA e financeiros de suas companhias.

É como aquela velha lição de História. Não que a Inglaterra não fosse humana ao lutar contra a escravidão em colônias de aliados em séculos passados, mas alforriados assalariados são potenciais consumidores, a questão humana é secundária.

Foi, por esse caminho, que o obsequioso governo dos EUA enviou ajuda humanitária a Cuba, sobretudo entre 1992 e 1995. É como o sequestrador que, por benevolente que é, joga um prato de comida no cativeiro do sequestrado.

Cuba destina 13,4% de seu PIB à Educação, o dobro do segundo colocado na América Latina e o segundo melhor nível do mundo, segundo dados da UNESCO. Ainda segundo a mesma organização, o analfabetismo em Cuba é da taxa de 0,2%, o menor do mundo. 11,3% do PIB cubano são dedicados à saúde, mais que Israel, único país na ONU que apoia o bloqueio e taxa equivalente a países como a Alemanha, segundo dados da OMS.

No entanto, com o embargo o PIB cubano não pode ser maior e consequentemente o investimento social.

Até 1959, antes da revolução, 70% das importações cubanas tinham origem dos EUA e 73% das exportações da ilha encontravam o mercado do vizinho do norte. As dificuldades impostas pelo bloqueio, como pagamento antecipado a raros produtos e trâmites de câmbio que oneram transações cubanas são realidade ainda hoje, meio século após o início do embargo.

Em 1992 com a Lei Torricelli, os EUA limitaram ainda mais o comercio cubano com navios de outras bandeiras, dificultando transações entre Cuba e outros países no mundo. Especialistas elucidam que se trata de grave violação do direito internacional.

Violando muitos acordos da OMC, do direito internacional e de convenções globais, o embargo não tem previsão de aliviamento, nem de plena retirada. Na Cúpula das Américas que ocorre nesse fim de semana, a pressão dos países latino-americanos para um relaxamento do cabresto estadosunidense virá mais uma vez à luz, como de praxe e como nas assembléias da ONU. Mas com vias à reeleição, o change de Obama não chegará tão longe, e o ato de guerra permanecerá.

Qual a razão do bloqueio? A luta dos paladinos da “democracia” e sua cruzada contra os inimigos de seus próprios interesses nacionais? Ou o medo de que um regime socialista ou comunista se mostre mais humano, eficiente e democrático que a selva do dinheiro e dos juros? Direitos humanos ou direitos financeiros?