terça-feira, 28 de junho de 2011

Poluídos e despudorados

Hoje fui acometido por uma dessas felizes inspirações que reúnem, em duas notícias aparentemente diferentes, uma análoga lógica. E não se fazia referência, nem numa nem n’outra, à similaridade que as casavam tão apaixonadamente.

Na primeira dessas notícias, destaca-se o calvário do poder público paulista em despoluir o Rio Tietê, hoje um córrego que mal reflete a luz do sol. Não obstante o investimento bilionário (da ordem dos R$ 3 bi) na tentativa de limpeza do rio, parece não existir vontade política para que todo esse investimento dê resultado. Enquanto máquinas mostram aos transeuntes das marginais que há trabalho sendo feito, diversos bairros e cidades do arredor continuam despejando seus esgotos no saudoso Tietê.

A outra nova, dessas que a gente lê e não dá tanta importância, é a de que o “DEM rediscute imagem de ser ou não de ‘direita’”, ipsis verbis. Pegou a relação? Sempre que leio notícias desse calibre, tendo a pensar nas “Scènes de la vie politique” da antológica “La comédie humaine” de Honoré de Balzac. Se o escritor francês respirasse os ares de nosso tempo, ia lhe faltar décadas de vida para registrar tanta inspiração que a política brasileira emana.

Mas sobre a comédia política desses trópicos já dei meus apontamentos, e a notícia é satisfatoriamente cômica pra que eu volte agora a esse picadeiro. Continuemos com a correnteza da feliz inspiração.

O ponto de convergência, que você certamente sacou, é a situação parecida em que se encontram o poluído DEM, certamente antigo e talvez futuro PFL, e o despudorado Rio Tietê. O partido, que já não ostenta pudor há muitas eleições, maquina secretamente em suas convenções maneiras de parecer mais limpo ao eleitor, sem que consiga se desvencilhar de sua essência elitista e senhoril.

O Tietê, pelo contrário, faz navegar a céu aberto os detritos paulistas, sobretudo os governamentais. Confundem-se em suas pastosas e inconfundíveis águas, se é que ainda há águas, os restos do descaso político e das necessidades naturais dos particulares. É, tal qual um partido político decadente, um lugar onde o interesse público e a necessidade privada se embaraçam.

E entre poluídos e despudorados, perdoar-me-ão os puristas logomáquicos, a merda continua a boiar...

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ministro da Verdade

Quando o escritor britânico George Orwell sentou em sua cadeira para escrever sua obra-prima, imaginou um catastrófico cenário futurista em que uma espécie de mescla fascista-socialista dominaria o mundo, suprimindo liberdades civis e até mesmo cortando pela raiz o pensamento crítico das pessoas. Todo canto do planeta era vigiado pelas câmeras do governo, os olhos do hipotético ditador Grande Irmão (Big Brother, para os íntimos), que aliás emitia ordens à população assim que achasse necessário. Enfim, uma espécie Pedro Bial sem aquela filosofia toda.

Nesse mundo catastrófico, o Ministério da Paz promovia a Guerra, o Ministério da Fartura rateava parcamente rações para a população enquanto o Ministério da Verdade nada mais fazia do que reescrever páginas de jornais e revistas antigas de modo a alterar a História e mostrar como tudo que acontece é ótimo (por exemplo, "a ração de 200 gramas de arroz aumentou para 300 gramas", sendo que na realidade há um mês a cota era de 400 gramas).

Orwell foi brilhante, mas errou num detalhe. Chutou um ano qualquer para o título de seu livro e eternizou o ano de 1984. Mal sabia ele que se escolhesse 1985 acertaria o ano em que uma espécie de ministro da Verdade herdaria a presidência de um país por aí, desses que saiam de uma Ditadura Militar.

José Sarney parece necessitar dos serviços do Ministério da Verdade para validar algumas declarações recentes. Para o senador, não havia necessidade de exibir fotos da época do impeachment de Fernando Collor quando de sua queda do poder em 1992 na galeria de fotos da história do Senado. "Não é marcante" comentou, talvez em um mesmo tom em que vociferaria "Ninguém aqui sabe de ato secreto" em uma daquelas câmeras/microfone espalhadas pelo país fictício de Orwell.

Agora, o maranhense defende que documentos estatais secretos assim permaneçam por toda a eternidade. "Não podemos fazer Wikileaks da história do Brasil", afirma ele, sob o argumento que a atitude poderia abrir feridas diplomáticas.

Sarney é o homem do partido da Ditadura que foi eleito como primeiro presidente civil pós-Ditadura. O homem que institui o congelamento dos preços para que os preços não subissem. O homem do Maranhão que foi eleito senador pelo Amapá.

Pois é. Ele reinventou o Ministério da Verdade.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

STF e seus limites

É uma discussão inconveniente.
O Supremo Tribunal Federal, a quem chamo carinhosamente de STF, vem tomando posições avançadas em debates polêmicos e creio estar ajudando a construir um país melhor.
Direitos são assegurados por essa postura, como no caso do reconhecimento da união homoafetiva e do direito à "liberdade de expressão em marchas", mas há um limite muito diluído que separa uma lógica de Estado democrática que assegure decisões salutares à democracia e uma lógica de Estado que extrapole as atribuições de uma de suas três instâncias de poder que o constituem.

É a realização de uma cidadania utópica ver tão belos direitos serem assegurados, mas se dependerem exclusivamente de uma decisão vertical, impositora, por parte do STF, corremos dois grandes riscos. O primeiro é de não surtir o efeito desejado, um risco que acomete qualquer lei contra-majoritária: se a sociedade não respeitar a lei, e a estrutura do Estado não for capaz de fazer com que seja respeitada, vira letra morta.

O segundo é ainda mais danoso, um STF legislador que seja a materialização da ideologia do sofá : o totalitarismo do "Ditador Bonzinho", que não exija ao cidadão pensar muito sobre as questões políticas e o represente satisfatoriamente em todos os âmbitos da participação política, não lhe atribua grandes responsabilidades enquanto ator político, que resuma seus deveres em uma cartilha de itens pouco exigentes, sem que tenha que sair de sua comodidade.


A participação política é um dever de quem não aceita um Estado desigual e injusto, e a luta por direitos, em suas infinitas formas, devem ser exercidas pelo poder Moderador, que, diferente do que acreditava Dão Pedrinho, deve ser exercido pelo povo, pelos cidadãos.

Contradizendo-me, o povo, por sua vez, é falível e injusto. Representado fielmente num legislativo de 513 deputados federais e 81 senadores, o reconhecimento da união homoafetiva, por exemplo, nunca passaria pelo congresso. Não é exclusividade dos nossos conservadores, já que na França não passou também, e está cada vez mais próxima da democraticíssima Uganda. O STF é avançou muito essa discussão.

Como decidir os limites do judiciário? O STF só deveria legislar para garantir direitos contra-hegemônicos, nunca para restringir liberdades civis. Mas isso é querer que o Estado trabalhe ao meu desejo liberal. Se eu quiser que estes direitos sejam assegurados, tenho que reclamá-los, esperá-los on demand pode ter um preço caro demais.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

No limiar do corrupto

Já começava a se arrastar, para além do que seria necessária, toda a celeuma política e publicitária das acusações ao ex-ministro Antonio Palocci. A Folha de S. Paulo deu o pontapé inicial num dos esportes mais apreciados pelo alto clero da política nacional: guerra de insinuações. A recente demissão foi tardia, mas não “infectou todo o governo” como insinuou o senador Álvaro Dias (PSDB/PR). A crise não é tanto do governo, pois se aplicássemos a lógica relacional da intriga política numa análise mais apurada da história do Brasil, não haveria figura pública que se salvasse. A crise é pessoal do ex-ministro Palocci e, por tabela, é nossa também.

E contra qualquer “J’accuse!” precipitado, de que eu estaria a defender Palocci, defendo, pelo contrário, que tudo seja devidamente apurado e esclarecido, não por deputados e senadores, mas por um órgão competente para esses fins. Roberto Gurgel, Procurador Geral da República, arquivou a representação dos parlamentares oposicionistas sobre a empresa de consultoria, sob alegação de que não há do que incriminar o ex-ministro.

Contudo a oposição ainda quer uma CPI (Bolsonaro deve entrar com representação no extinto DOI-CODI pleiteando interrogatório e tortura), e infelizmente isso ainda há de se alongar demais no congresso, mesmo com a demissão de Palocci. Infelizmente porque o ato tem sido tão prolixo e mastigado, que o público já perdeu o fio da meada do resto da trama.

Temos o péssimo costume, quando se trata de política nacional, de ecoar o já batido sermão das comadres políticas, homens públicos e grandes veículos de comunicação, sem dedicar algum esforço por entender o que realmente está por trás desses discursos.

Ora, a corrupção nestas terras existe desde que o “peito ilustre Lusitano” fincou suas primeiras cruzes por aqui, propagando para o além-mar seus vícios políticos tipicamente europeus. Já passado quase meio milênio, ainda carregamos as cruzes de uma máquina pública enraizada num solo mal cultivado, sedimentado por camadas e mais camadas da mais estéril corrupção. A gente se acostumou à impunidade, ao “jeitinho”, de tal modo que, para cortar esses males pela raiz, vai um bom trabalho, trabalho que interessa a poucos.

Apesar de tudo isso, tendemos ao imediatismo, por puro conformismo e desinteresse público, por idéias fixas e fidelidade eleitoral incondicional ou pela mais miserável desinformação política. Pois desse solo queimado pela corrupção brotaram escassas almas éticas, frutos da resistência às áridas condições educacionais que muitos fizeram questão de conservar no correr das estações e da resistência ao rebanho de agiotas do Estado que pastam, há séculos, nesse solo queimado.

E se você é grande pecuarista, latifundiário, não se sinta vitimado pelas metáforas, são recursos de linguagem apenas. Não ferem nem matam ninguém, não definitiva e literalmente. Aliás, aos desinformados, a corrupção política também tem chacinado camponeses (sinédoque) nos distantes rincões do nosso país ultimamente.

Não espere que todos os parlamentares que entram com representações aos MPs (Ministérios Públicos) e solicitam instauração de CPI na Casa fazem isso com a espada da ética em punho. Só uma minoria. A grande maioria dos parlamentares é capaz de passar toda sua legislatura requerendo representações contra seus desafetos políticos em nome de uma cruzada partidária que só a gente, eleitorado, pode resolver.

E é lamentável como a viciada imprensa no Brasil, sobretudo na política e no esporte, depende de “grandes crises” de quem está no topo. Se não as há, ela continua com suas crônicas moléstias: rabo preso e vista grossa. De um modo geral, a cobertura política se contenta com a guerra burocrática nas instâncias de poder, ou mesmo com o circunlóquio sempre presente nas manifestações públicas de alguns congressistas.

É necessário noticiar que Palocci aumentou consideravelmente seu patrimônio quando deputado, sem dúvida. Mas também há necessidade desses veículos discutirem reiteradas vezes que outras figuras políticas duplicam, triplicam ou quadruplicam seus patrimônios graças a seus poderes parlamentares e mesmo simplesmente por serem parlamentares. Porque isso está à vista de todos.

Diz o bom senso que o enriquecimento não é crime, só quando acontece de maneira corrupta. No entanto devemos ter relativizado a idéia de corrupção no Brasil, nesses séculos de idas e vindas. Em política, nosso “jeitinho” foi ampliando o limiar do aceitável. E enquanto estávamos distraídos com nossos afazeres do dia-a-dia e com as notícias que os jornais sempre escolheram nos dar, aumentar o patrimônio à custa do Estado virou uma prática legal, até honesta, publicamente tolerável e fundamentalmente democrática.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

PLC 122 e uns surtos

O Brasil tem todo o direito de ser a terra do Paradoxo, nós flexibilizamos o conceito de absurdo. A gente é assim mesmo, o mundo que nos engula e o De Gaule que chupe, falaí, velho lobo!
Mas ver gente que prega em seu primeiro mandamento "amar ao próximo como a si mesmo, e a Deus sobre todas as coisas" querendo minimizar as consequências dos crimes de ódio, não há Dreher que contenha o desânimo.

Há um projeto de lei dividindo o país. Como de costume, a divisão é injusta, que tradição é tradição. A PLC 122 quer penalizar os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. E, pois é, isso polêmico, juro!

"Olha que absurdo, os gays vão poder praticar sodomia no altar e se a gente reclamar vai preso!" é mais ou menos isso que CNBB, Silas Malafail, Mogno Malta, Jair Bolsonazi e outros ícones do retrocesso cognitivo chamam de argumento.
Como a lei de proteção para animais é um consenso mais pacífico, chutar cachorro morto deve ser crime. Não dá pra debater a afirmação, seria cruel. Reproduzir o trecho do projeto de lei que reserva o direito ao medievalismo em determinadas circunstâncias deve ser suficiente:
§ 5º O disposto no caput deste artigo não se aplica à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé,fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal.
Mesmo essa ressalva é contraditória e insuficiente, que basta uma garagem e uma fantasia para que se reclame o direito de discriminar pessoas não só por identidade de gênero e orientação sexual, que tanto interessam ou preocupam aos ilustres citados, mas também por raça, cor, etnia, gênero, sexo, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência. É uma brecha perigosa, mas que o liberal projeto precisa deixar para não queimar na fogueira pós-moderna.

O Senador Magno Malta se opõe ao projeto por acreditar que a lei não pode criar um "terceiro gênero". O argumento é igualmente estapafúrdio, mas é emblemático. A definição de Gênero de Malta é restrita a condição física, determinada por Deus. É um direito dele pensar assim, e de todos que sigam religiões afins. Não é direito de nenhum desses, no entanto, negar aos outros o direito de refletir sobre o gênero e considerá-lo como a condição na qual um indivíduo se reconhece e deseja ser reconhecido pela sociedade.



Excelente fotografia de Magno Malta e com possíveis cabos eleitorais (pode isso, Arnaldo?) A foto vem daqui, ó.



Quando o senador e seus partidários se declaram favoráveis à negação do projeto, estão mantendo cidadão em condição de classe inferior.

As leis são convenientemente criadas por uma provável maioria padronizada. Branca, heterossexual, cristã, anglo/eurocêntrica e financeiramente abastada, supostamente representaria toda a população brasileira que ufaniza-se por sua miscigenação. Para complementar o paradoxo, declara-se liberalmente laica e plural, por mais incoerente e improvável que soe.

Essas leis reconhecem cidadãos de segunda classe nas balcânicas minorias que a complexa heterogeneidade humana nos oferece (negros, idosos, muçulmanos, judeus, pobres, cadeirantes et cetera) e lhes assegura parcas ferramentas para minimizar a defasagem de direitos historicamente restringidos, mas nega-as a determinada condição minoritária por ferir seu conceito retrógrado de família, ou seja lá o que for. "Você só pode pertencer à minoria que nós estabelecidos aceitamos".

Se a demissão de alguém ainda puder ser justificada por sua orientação sexual ou identidade de gênero; se a violência a um indivíduo motivada pelo ódio à identidade de gênero não for penalizada de forma especialmente qualificada - qual se dá quando ocorre motivada por ódio à etnia ou raça da vítima, por exemplo - estes cidadãos não estarão recebendo a proteção legal necessária para que sejam reconhecidos como são e como de sejam. Se à outros esse direito é concedido, temos uma meia justiça seletiva e marginalizadora.

Dessa forma, apesar de Malta acusar o projeto de criar um terceiro gênero(?), ele está brigando para que cidadãos pertencentes à minoria GLBTT mantenham-se como cidadãos de uma terceira classe, ou ainda pior, que não sejam reconhecidos legalmente em hipótese alguma. Há 10 anos se tenta mudar isso através do projeto, que vem se atualizando desde então, mas uma década é muito pouco para um pensamento estagnado há dois milênios.