Foto: Sebastião Salgado |
Há poucos
anos comprei e li um dos livros mais acurados e notáveis que já habitaram meu
modesto acervo. Em “Brasil e Estados Unidos: o que fez a diferença”
(Civilização Brasileira), o jornalista Ricardo Lessa cumpre magistralmente o
que o lacônico título anuncia. Retomei recentemente a leitura desse trabalho
que esmiúça, em paralelos históricos do desenvolvimento das duas nações, os
fatores principais que as colocaram em rumos tão desiguais.
Também me
motivo a escrever este texto pelo inexaurível “complexo de vira-lata” que ganha
novos contornos, virtuais, em tempos de redes sociais. Tema já apreciado neste blog. É importante saber por que
somos o que somos, quem nos fez como somos feitos e quem continua a nos manter
do jeito que somos mantidos. É do filósofo espanhol George Santayana
(1863-1952) a emblemática máxima: “um pueblo que olvida su pasado está
condenado a repetirlo”.
E por não
nos darmos conta do nosso passado, por preguiça ou má-fé, carregamos de maneira
maçante essa pose de “narciso às avessas”, evocando Nelson Rodrigues, “não
encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima”, continua o carioca
dramaturgo recifense. Se não encontramos esses pretextos, encontremos,
sublinhemos e nomeemos os que nos nutrem desse famigerado complexo de “Ah, é
Brasil mesmo” no nosso tão presente pretérito.
E é à
história que devemos ir, à formação da nossa realidade atual.
Portugal,
quando cá aportou, não tinha verdadeiramente o propósito de cá aportar. Os
planos de Cabral eram de chegar às Índias, para alimentar o próspero comércio
de especiarias, rentável à coroa portuguesa. Logo o Brasil se tornou uma
colônia de exploração, recebendo degredados e sem propósitos maiores que
enriquecer o império português no início do mercantilismo. Já o Mayflower, que aportou em Cape Cod no
Massachusetts 120 anos mais tarde que Cabral, levava peregrinos ingleses que
escapavam de uma coroa corrupta e cheia de vícios, um povo que ansiava uma
nova vida num novo mundo.
No Brasil, fomos
criados em raízes absolutistas, que amarraram a colônia a Portugal, e em raízes
católicas, que cegaram iniciativas de insubmissão nesta vida terrena. Quando do
“achamento” do Brasil, reinava na Santa Igreja o Papa Alexandre VI, um Bórgia,
família famosa pela série de crimes como simonia, estupros, corrupção,
assassinatos e ainda papas fartos de proles.
Os EUA
viveram 156 anos de colônia, com relativa autonomia dos estados do norte
durante todo esse período. Aqui fomos colônia por cerca de 300 anos, e mesmo
nossa primeira constituição fora assinada por el-rei D João VI, mantendo
poderes absolutistas centralizados no império dos Pedros, o primeiro e o
segundo, até a proclamação da república em 1889, mais de um século depois dos
EUA.
Ainda assim
nossa república não foi estável como a ianque. Nasceu fundada por militares,
num golpe, com ministros monarquistas e sem participação popular. As revoltas
emancipacionistas que surgiram em nossa história foram pouco apoiadas e duramente
reprimidas, como a conjuração mineira, a revolta dos alfaiates na Bahia e a
revolução pernambucana.
Participação
popular, na realidade, nunca foi regra na nossa história. O Brasil fora sempre
comandado ora pela coroa lusitana e suas crias reais, ora por uma elite
agrária, latifundiária e exploradora que reina ainda por vastas áreas da atual
república federativa e democrática, sobretudo no legislativo. O corporativismo
grassa nas altas instâncias de nossa pátria amada, desde o século XVI.
A
independência do Brasil foi se tornar um absolutismo próprio. E olhe lá, pois
D. João VI foi imperador titular daqui. Enquanto nossos vizinhos americanos,
como Venezuela, Argentina, Paraguai, Chile e Equador se livraram da coroa
espanhola, com Bolívar e San Martín, e já viviam experiências republicanas, nos
emancipamos em uma monarquia bragantina. “Além da sífilis, é claro”, herdamos o
fisiologismo europeu e um imperador “que hás de respeitar” el-rei seu papai. O
povo que se curve.
E continue
curvado pois, como dito, não foi diferente depois de proclamada a república. Fundada
por militares, a primeira dissolução do Congresso demorou apenas dois anos para
acontecer, o Marechal Deodoro foi o pioneiro da ditadura militar brasileira e, favas
contadas, estimulou também o coronelismo na terra brasilis. Prudente de
Morais foi o primeiro presidente civil do Brasil, mas fortemente apoiado pela
oligarquia do café, que também elegeu Campos Sales, paulista, que indicou outro
paulista para sua sucessão, Rodrigues Alves, que teve um vice mineiro que seria
o próximo presidente, Afonso Pena, e inaugurava-se o oligárquico
café-com-leite.
A tentação
de ir aos pormenores da história é grande. Mas o fato é que, proclamada a
república, tivemos um período militar, outro cujo governo foi das oligarquias
do café-com-leite e em seguida mais um golpe que inicia a ditadura getulista. Trocando
em miúdos, tivemos experiências democráticas somente na metade do século XX,
mesmo assim sufocada por outras duas décadas de ditadura militar, das mais
infelizes páginas da nossa história. Nossa república democrática estável, ou
aparentemente estável, só acontece há menos de 30 anos. A história coletiva de
um Brasil soberano é muito recente.
E mesmo
assim, conquistada a redemocratização parcial em 1985, nosso cambaleante presidencialismo
foi liderado por um detrito da ARENA, José Sarney, um quase czar do Maranhão, e
seu nepotismo. Em seguida, já com a nova carta magna, foi eleito pelo poderio
midiático o belo e carismático Fernando Collor de Mello, outro resquício da
ARENA e reencarnação do primeiro Pedro imperador, pra revelar que nossa sina de
fidalguia deve responder a planos espirituais. O “caçador de marajás”, neoliberal
e privatista, fora impedido da presidência em 1992 por acusações de corrupção.
Após Itamar,
vice de Collor, é eleito um intelectual à presidência. FHC que, apesar da
estabilidade econômica do plano real, impulsionou uma onda de privatizações com
visíveis prejuízos ao erário, tornou o país refém do capital estrangeiro com
danos à produção nacional e se aliou às oligarquias rurais e aos resíduos da
ditadura, que ainda compõem quadros das coligações de seu partido.
Com Lula o
cenário mudou, ma non troppo, haja
vista o poder que as oligarquias ainda detêm nos legislativos e nas alianças
com um demasiadamente inflado PT centro-esquerda.
Somos filhos
do escravismo com a monocultura exportadora. Um país de ciclos: da cana, da
mineração, do café, da borracha e por isso de uma industrialização
drasticamente tardia. O imperativo do desenvolvimento fabril só venceu as
resistências da oligarquia rural daqui no meio do século passado. E o
latifúndio ainda dá as cartas nesses largos rincões do Brasil, assassinando
camponeses, expulsando indígenas de suas terras e pervertendo a legislação
ambiental em favor de seus bolsos. Essa turma ainda reina na bancada ruralista
em Brasília e na grande mídia de rádio, TV e impressos.
É fato que
nossa segregação racial é mais leve do que nos EUA. Aqui parece mesmo ter-se
estruturado uma estratificação socioeconômica, mais do que puramente racial.
Mas ainda assim é notória a disparidade de oportunidades, sobretudo de direitos,
entre brancos e negros, por mais que uma elite cínica talvez ache que certas coisas sejam obras do acaso.
Fomos
colônia escravista e monocultora importando manufaturados por quase todo nosso
enredo, subjugados por ditaduras militares, absolutismos e oligarquias do
latifúndio. No Brasil a “sorte” sorriu para as elites agrárias no norte, centro
e nordeste e para alguns imigrantes bem sucedidos nos mais urbanizados sul e
sudeste. A conta dessa história não pode jamais ser cobrada do povo, pois é o
povo quem sempre sofreu e ainda sofre com o fardo da história.
Nosso atraso
em relação a outras nações é resultado de uma histórica e forte plutocracia.
Durante todo o período da colônia, vice-reino, império e por maior parte da
república, fomos dirigidos pelos mais ricos, por elites defendendo seus
interesses. E ainda é assim, mesmo com a ascensão de um metalúrgico ao poder.
As elites
controlam os meios de comunicação, como as grandes Globo, Folha, Abril, Estado
e a agropecuarista Band; controlam as leis em Brasília com os direitistas PSDB,
DEM, partidões disformes e incongruentes como PMDB e PSD e partidos menores que
abrigam interesses pouco coletivos em ideologias muito abstratas; e controlam
também os interesses do capital estrangeiro com grandes multinacionais e seus
lobbies, sobretudo o fiscal.
Se a
Educação no Brasil ainda é fraca, isso é decorrência da história. O ensino
público, de qualidade e universal, nunca foi do interesse das elites que
conduziram a grã-canoa brasileira por 5 séculos. O trabalhador teve que
trabalhar, Educação é um negócio perigoso pra quem está no poder, iluminação
política crítica derruba regimes e emancipa almas que se tornam conscientes de
seus fados. Desse modo, foi difundida a “cultura da ignorância”, apontada por
Florestan Fernandes, pela elite às massas durante nossa história.
E essa conta
não pode mesmo ser debitada do povo brasileiro, sempre alheio ao seu destino
político. Se hoje temos falhas, corrupção, baixos índices na Educação e
Saúde, temos também um pequeno grupo a quem não confiar mais o destino da
nação. O Brasil foi feito assim, por uma elite plutocrática, oligárquica,
corporativista, segregacionista, clientelista, patrimonialista, exploradora e
usurpadora de direitos.
Uma elite
que ainda está aí, sustentada pela preguiça e má-fé políticas das classes alta
e média, mais preocupadas em continuar ecoando a oca lamúria “vira-lata” em vez
de assumir suas responsabilidades dentro da inescapável coletividade nacional. Fomos feitos assim.
Um comentário:
Ótimo texto, muito elucidativo. Acho que deveríamos comparar o Brasil também com a Austrália, que igualmente começou como "depósito humano" (um presídio britânico), e, assim, poderíamos descobrir outros pontos onde a História se bifurcou de maneira tão diferente para duas nações com origens parecidas.
Parabéns!
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