segunda-feira, 28 de maio de 2012

Cidade virada


Em São Paulo as coisas adequadas acontecem em doses. Goles de cidadania num mar de barbárie. Chega a ser piada de mau gosto celebrar as episódicas viradas que tomam todo um dia de fim de semana, cada uma. Otávio Augusto, imperador romano, ao menos dava o panis com o circenses. Em São Paulo fica só o circo, porque a galinhada é pra poucos.

Crianças fumam crack no bairro da Luz, um dos palcos
de eventos como a Virada Cultural.
A Virada Cultural seria uma política perfeita, fosse a cidade amistosa com artistas e o entretenimento mais acessível ao público. Em outras partes do mundo, funcionaria como estímulo à arte e cultura. Mas onde a divulgação de material de artistas de rua já foi proibida pela alta cúpula municipal, a cultura fecha as portas para muitos.

Contando ainda com a dificuldade de acesso a teatros, museus et similia. Com políticas que evidenciam cada vez mais um potencial de apartheid na Pauliceia, as opções suburbanas de cultura se reduzem, na maioria das vezes, aos cinemas das grandes redes, e olhe lá. A cultura é concentrada no centro, onde poucos têm realmente acesso. O transporte público trafega em horários limitantes, além de taxis, estacionamentos e ingressos que restringem a difusão da cultura por outras partes da cidade.

O negócio pra maioria é esperar a próxima dose da virada cultural, com ou sem a afamada galinhada. Ou atentemos a candidatos que têm propostas reais para educação e cultura para toda a cidade neste ano.

Os esportes também ganham seus quinhões de atenção. A Virada Esportiva tem o propósito de realizar atividades pela cidade. Temos arenas no Anhangabaú, onde normalmente encontramos poças de urina, trabalhadores apressados e andarilhos numa cidade sem alma. Além de outros pontos em que o esporte é estimulado, anualmente.

Mas nas escolas públicas pouco se produz de incentivo ao esporte. O sistema CEU implantado em outra gestão tem o intuito de levar à periferia um constante trabalho de estímulo a atividades esportivas, artísticas e culturais, paralelas à educação formal. No entanto é pouco. Com poucos parques e áreas verdes e ludibriados sonhos de ciclovias, as opções são limitadas, sobretudo, a clubes privados.

Continuemos tendo como sinônimo de esporte a torcida pelo time, no sofá. Ou olhemos e escolhemos com atenção iniciativas que já deram sucesso e podem trazer novo fôlego esportivo à cidade, sem segregação, a partir deste ano.

Por fim, vem aí a Virada Sustentável, de iniciativa privada, com exposições, oficinas e demais atividades voltadas ao meio ambiente, direitos humanos, biodiversidade e mudanças climáticas.

Ao menos uma vez por ano, se a moda pegar. Pois pra uma cidade que assiste à gentrificação e caça a dependentes químicos, a preferência da prefeitura pelo transporte privado ao público, a ausência quase completa de coleta seletiva, que também sofre com o reduzido número de áreas verdes, com o deslocamento da criminalidade para a periferia, níveis de poluição e trânsito alarmantes, dentre outros retrocessos sociais, não cabe, para essa cidade, o selo sustentável.

Assim, por aqui as boas iniciativas são episódicas e carregadas de propaganda: circo. A política pública paulistana é virada, só de viradas. No resto do ano a cultura é cara, o esporte se reduz à academias e a sustentabilidade passa longe da selva urbana. Já passou da hora de cultivar outra virada, também sustentável, a partir deste ano.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Chamar corintiano de ladrão não é racismo ou preconceito de classe?


Não sou corintiano e nem adepto do discurso politicamente correto a qualquer custo. Discurso esse que tem se tornado um patrulha e provocado ações judiciais desnecessárias como a investigação do vídeo-clipe de Alexandre Pires e muitos outros pedidos de retratação contra humoristas mundo afora.

Em todo caso, um tipo de piada com corintianos passa incólume a essa patrulha e não entendo porquê. Talvez seja porque, como alguns definem, o politicamente correto não deixa de ser uma arma de quem tem alguma força política para manifestar sua opinião.

Fato é que é corriqueira a associação jocosa corintiano/ladrão/analfabeto. Por que isso? Bom, o Corinthians tem uma das maiores torcidas do Brasil, é conhecido como time popular e não é segredo para ninguém que boa parte dessa torcida vem das camadas mais pobres (caso do Flamengo também, por exemplo). Tanto que os próprios corintianos assumiram a alcunha de "Maloqueiros".

Também é fato que negros e pardos são maioria nas camadas mais pobres da população brasileira. Ou seja, a associação vem na esteira da relação que estabelece que pobre e negro é também analfabeto ou ladrão. Ora se há analfabetos no país, isso é retrato da educação precária do Brasil. Já chamar todo um segmento da sociedade de ladrão é generalizar e denegrir a imagem de um grupo.

Fazer esse tipo de piada com corintianos me parece uma atitude racista, ou no mínimo, um preconceito de classe. Muitos outros tipos de piadas foram tachados - com razão - de machistas, racistas ou homofóbicas e aos poucos passaram ao lodo do politicamente incorreto. Será que nesse caso, isso vai acontecer?

* em tempo: até segunda ordem, a piada com a falta de títulos na Libertadores segue valendo. E é engraçadíssima!


domingo, 20 de maio de 2012

Paulistices


Moro em São Paulo há mais de dois meses, uns 80 dias que já me valeram uma volta ao mundo, menos pelas aventuras do livro de Júlio Verne e mais pela quantidade de culturas e de povos que já vi pela cidade.

Fora o sotaque nordestino bem mais comum que o paulista, nas ruas vejo grupos de africanos conversando num idioma que eu não faço a menor ideia qual seja, japoneses, chineses e boliviano, sendo que os primeiros são os que mais me intrigam. O que faz uma pessoa arriscar a vida noutro lugar que usa outro alfabeto e que fala um idioma completamente diferente? É a crise. Claro, sem contar os turistas que vivem olhando para cima com suas máquinas fotográficas e para trás procurando os colegas de excursão mais lentos.

São Paulo mistura uma tecnologia que eu nem imaginava que fosse ver com um recorte do passado que eu pensava não existir mais. Há televisões em ônibus (na verdade passam slides, mas já um primeiro passo) exposições interativas e ainda existissem engraxates e lojas de máquinas de escrever. Sim, só de máquinas de escrever.

Eu não fazia ideia de quantos mendigos existiam em São Paulo. Vê-se até famílias inteiras nas ruas vestindo trapos e com um mau cheiro que se percebe há uns dois ou três metros de distância. Impossível não constatar: não se vê muitos cães no centro da cidade porque a concorrência com seres humanos por comido é desleal aos irracionais.

Por aqui se acha de tudo. Sem procurar, tropeça-se uma banda. Elas que são tão raras em Bauru. Há também uma efervescência política na Avenida Paulista, marchas, paradas, megafones na Praça da Sé.

O caminho pelas ruas do centro é uma sequência de abordagens, perguntas e afirmações. Vai comprar ouro? Eu leio sua mão, trago a mulher amada. O demônio está entre nós. Amigo, almoço por quilo é aqui. Tem um real? Onde é a Boa Vista?

Nas ruas ainda se vê emos e metaleiros, mas são mais comuns aqueles que misturam calça jeans, camisa branca com algum desenho ou frase, cabelos coloridos, jaqueta xadrez, óculos de armação grossa e de cor viva, ou com calça xadrez, camisa colorida, jaqueta jeans, ou dois desses quatro itens. Ou todos e mais alguma coisa. São de tantas tribos, muitas vezes de mais de uma. Ou às vezes de nenhuma. 

São Paulo bem vale uma foto. 

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mirem-se no exemplo


O país tem pouco mais de 403 mil habitantes em cerca de 103 mil km². Independente há cento e poucos anos, a república é jovem, 68 anos. Com 99% de alfabetização e mortalidade infantil não passando de 2,9 crianças por mil nascidas, esse pedaço de terra cercado de água está consideravelmente distante do continente europeu, física e democraticamente.

Com a ajuda do Mapa de Caracteres e do Google Translator,
acima está algo como: "Parem de oprimir o povo no país"
Enquanto a oligarquia assola a zona do euro, a Islândia se sobressai pelos atos de soberania do povo. Um pedaço de democracia cercado pela austeridade à “Merkozy” e pela recessão. O referendo grego do Ágora ou Nunca seria um bom exemplo às cúpulas financeiras que tentam controlar a crise as custas da população. Seria, não fosse a adaga do FMI a cutucar os anseios democráticos helênicos. O exemplo não saiu de Atenas, não obstante a música.

Com a eclosão da crise financeira de 2008, ouvimos boatos de nacionalização dos bancos na Europa e mesmo nos EUA, para agonia dos liberalistas. No entanto só aquela pequena ilha a noroeste do velho mundo promoveu o feito. Os três bancos privados islandeses, Glitnir, Kaupthing e Landsbanki foram nacionalizados em outubro de 2008. Mesmo assim a Islândia sofreu os duros golpes da recessão.

A coroa islandesa despencou, a Bolsa de Reykjavik sofreu queda de 76% e suspendeu suas atividades e a falência da ilha fora decretada. À época, 2008, foi o país que mais sofreu com a crise no mundo.

No início de 2009 inicia-se o protesto. O povo islandês começa a se concentrar em frente ao Parlamento (Althingi) e ordena a renúncia de todo o governo conservador, comandado por Geir Haarde.

Foram convocadas eleições antecipadas e, em abril do mesmo ano, os islandeses deram a vitória à coligação formada pelo Movimento Esquerda Verde e pela Aliança Social-Democrata, elegendo Jóhanna Siguðardóttir como sua primeira ministra. Para salientar o caráter exemplar da mudança de governo, Jóhanna é a primeira mulher a ocupar a liderança do parlamento islandês, além de ser homossexual assumida.

Um paraíso do neoliberalismo sob o comando de Haarde, a Islândia costumava abrir os braços ao capital financeiro estrangeiro, principalmente ao britânico e ao holandês. Com a quebra dos bancos islandeses, sobretudo o maior, Landsbanki, os governos da Grã-Bretanha e da Holanda abriram ação para a indenização de seus clientes, a conta tendo que ser paga pela Islândia.

A dívida ficou estimada em 3,5 bilhões de euros e recairia sobre o povo islandês, pois a venda dos bens do Landsbanki não cobriria a tal dívida em sua totalidade, e a responsabilidade pelos débitos do banco era do governo que o nacionalizou.  O Parlamento aprovou uma lei que cobrava de cada cidadão islandês o ressarcimento da dívida, assim, dividida.

Novamente os islandeses tomaram as ruas em 2010 e exigiram referendo para a tal lei. Em janeiro de 2010 o presidente, Ólafur Grímsson, se recusa a sancionar a lei e declara que será feita a consulta popular.

Ágora. Em março, 93% dos islandeses votam pelo não pagamento da dívida. Enquanto Grécia, Irlanda e Espanha são exemplos de países que sofrem com as exigências do FMI para pacotes de austeridade e recusa de referendos por parte dos governos, na pequena ilha ártica o povo é quem decide os rumos da nação.

Em seguida, os responsáveis pela crise dos bancos privados são investigados e responsabilizados juridicamente pela crise financeira que quebrou o país.  São iniciadas investigações e detenções com a pressão do povo sob a coligação do novo governo. Os crimes financeiros investigados e esclarecidos na Islândia permanecem um mistério no resto do mundo. Lá há mobilização.

A pressão popular foi longe, uma assembleia constituinte foi convocada, com a eleição de 25 cidadãos sem filiação partidária: representantes sindicais, estudantes, agricultores, jornalistas, dentre outros. A nova constituição é inspirada na carta magna dinamarquesa, tendo inclusive recebido sugestões da população via internet.

Há escassa cobertura internacional, justificada, uma vez que um povo tomando as rédeas de sua própria nação desagrada aos grandes veículos de comunicação e a seus protegidos.

No entanto, são boas as previsões de crescimento da Islândia em 2012. E o exemplo dado pelo povo islandês está sendo divulgado na Espanha, por exemplo, e necessita ganhar repercussão. Para além dos usos indevidos da democracia no resto do mundo, ali levaram ao pé da letra o sentido da palavra.

Mesmo que a crise tenha passado como marola pelo Brasil, ainda fica o exemplo de mobilização séria, responsável e direta. Meros protestos soltos em redes sociais, sem o devido direcionamento, não chegarão longe. Logo, mirem-se no exemplo.